O que eu gosto de um bom assalto

     Temos, por vezes, uma visão demasiado negativa de certos profissionais que, na verdade, acabam por só trazer coisas boas à nossa vida. Caso em estudo: os assaltantes de casas. Convém é que a Polícia os apanhe antes que eles roubem o que quer que seja. Mas, esquecendo isso, eles têm tudo para trazer sentido e felicidade às nossas existências.
     Há tempos, houve uma épica tentativa de assalto a uma casa na minha rua. De acordo com relatos de testemunhas, foi uma coisa digna de filme, com uma carrinha suspeita e indivíduos escalando a fachada de uma moradia no silêncio da noite. Aquilo com que os ladrões não contam é a Internet - desde que a rede das redes entrou nas vidas dos portugueses, há perto de quinze anos, as pessoas deitam-se muito mais tarde. Há dez anos no IRC e hoje em dia no Facebook, há sempre quem esteja teclando alegremente, por vezes até ao nascer do sol. E, por isso, é fácil que haja testemunhas das actividades nocturnas ilícitas - o país já não se deita em simultâneo mal toca o hino e a emissão da televisão termina (até porque, hoje em dia, as emissões das televisões não terminam).
     Acordei por volta das cinco da manhã com clarões de lanternas atravessando os orifícios da persiana do quarto, gritos de «ele foi por ali» e de «abra, é a polícia». Quando, a medo, vou espreitar o que se passa na rua, deparo-me com uma cena que parece saída de Tropa de Elite: há polícias armados até aos dentes e outros à paisana, controlando toda a minha rua. E há vizinhos meus em pijama e roupão, com um olhar na fina fronteira entre a inquietação e o entretenimento - é nessa altura que percebo que é também esse o meu próprio olhar e que estou cheio de inveja por não estar ali em baixo, à porta da minha casa, pronto a dar um depoimento a alguma eventual estação de televisão que apareça para fazer a reportagem. Como estou em cuecas, decido escolher as minhas melhores calças de pijama para descer. A voz da razão é a da minha mulher, que me diz que nada garante que um dos meliantes procurados não esteja escondido no nosso jardim e armado. Concordo em não descer, porque o meu filho precisa de um pai, mas o grau de inveja dos meus vizinhos em pijama e roupão, convivendo com a polícia e assistindo de perto às buscas, aumenta exponencialmente.
     A dada altura, apercebo-me de que, apesar de estar num quarto escuro espreitando por uma fina tira de janela, os polícias já me viram. «Está ali uma pessoa», diz um deles. De repente, sinto-me suspeito e chego a concentrar-me, de modo a tentar recordar se, antes daqueles eventos, eu estava mesmo a dormir ou a assaltar a casa dos meus vizinhos. Estava a dormir. Decido abrir a persiana e a minha primeira tentação é gritar «NÃO DISPAREM! EU RENDO-ME!», mas a minha mulher é mais rápida e grita o que se impunha ser gritado: «NÃO TOQUEM À CAMPAINHA! ACORDAM O BEBÉ!».
     Com o controlo remoto do portão e sem sair da janela, deixamos meia dúzia de valentes homens da lei entrar no quintal e fazer uma busca. Sinto uma felicidade infantil: eles escolheram o nosso jardim para procurar criminosos! Faço um post nas redes sociais com o meu telemóvel; sinto-me como Sohaib Athar, o informático que comentou no Twitter a operação de captura e morte de Bin Laden na casa ao lado da sua.
     No dia seguinte, não perdi uma oportunidade de contar toda a saga a toda a gente com quem me cruzei. E, como eu, certamente os meus vizinhos. Repeti o discurso empolgado umas dezenas de vezes. Em alguns casos, consegui mesmo arrancar aos meus interlocutores um «mas está bem?» preocupado.
     Não há nada como um bom assalto!

Nuno Markl, in "Miopia e Astigmatismo"  

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