Horizontalidade e verticalidade

     "O homem da posição vertical aproximou-se do homem da posição horizontal, afivelando no rosto crispado uma expressão de indizível náusea.
     Por fim, numa decisão irreprimível, optou por insultá-lo:
     - Pulha! Escroque! Canalha! Criatura  ignóbil! Monte de esterco!... Dejecto social!
     Parou aí, também para respirar e ganhar algum fôlego, mas pareceu vagamente satisfeito com a imagem visual e olfactiva dessa última injúria, permitiu-se até repeti-la:
     - Dejecto social, é isso! Não passas de um cagalhoto!
     O homem da posição horizontal não respondeu nem reagiu. Tinha os olhos semicerrados e uma expressão de soberana indiferença que se tornava profundamente irritante.
     Essa atitude acicatou ainda mais o furor do homem da posição vertical. Cerrava os punhos, cravando as unhas na palma das próprias mãos, e a voz tornara-se rouca de tanto ódio acumulado:
     - Sabes o que é um miserável? Não sabes... Pois eu explico: és tu!... E sabes o que é um crápula? Pressuponho que também não sabias... Mas eu volto a explicar: és tu!... E terei porventura de te explicar o que é um ser abjecto, destituído de qualquer réstia de vergonha, um castrado da dignidade?!... Pois bem: és tu!
     O homem da posição horizontal mantinha o hermetismo silencioso da sua horizontalidade.
     E essa postura impávida revelava-se ainda mais provocatória do que as injúrias lançadas pelo homem da posição vertical, obrigava-o mesmo a tornar-se prolixo na expressão dos impropérios: 
     - A tua vida, essa coisa repelente que tem sido a tua presença junto de nós, não passa de um lamaçal de águas pútridas! És uma fonte de escarros ranhosos!... Serves-te cobardemente da tua actual posição e dos privilégios que ela te concede para alcançares uma imunidade tão sórdida como ilegítima! És filho da infâmia e abrigas-te atrás de uma barreira de repelência!
     O homem da posição horizontal continuava estático e sereno. Na sua imutável frieza, dir-se-ia uma estátua jazente, com algo de tenebroso nessa absoluta insensibilidade.
     Desesperado com a ineficácia do seu discurso, o homem da posição vertical dava mostras de descontrolo emocional, temia-se a cada instante que passasse das palavras aos actos, que recorresse à violência. Recorreu apenas ao cuspo, mas acabou lamentavelmente babado, sem conseguir acertar no alvo, e sentiu que seria melhor e mais digno retirar-se, afastar-se para sempre do homem da posição horizontal, não sem antes lhe apontar o dedo acusatório e proferir com acenos dramáticos:
     - O que vale neste momento é que eu recuso rebaixar-me ao nível a que chegaste!
     Afastou-se em passada lenta mas decidida.
     E, nesse momento, surgiram dois homens de aspecto soturno que retiraram umas flores do caminho e comunicaram a uma senhora vestida de negro que se amparava a amigos e familiares:
     - Se Vossa Excelência permite, será talvez altura de fecharmos o caixãozinho..."

António Victorino d'Almeida, in "Os devoradores de livros" 

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