AS MÃOS

   "Um homem com um balde de tinta na mão esquerda traça com a mão direita uma linha que separa Berlim. É uma fotografia de 1948. O homem que estava nessa fotografia, ainda novo, é o velho que agora segura na fotografia.
   Ele olha atentamente para a foto e tenta identificar a rua que ele, sozinho, com um balde de tinta, dividiu em dois - como se a tinta branca fosse suficiente para separar duas formas de entender e actuar sobre o mundo. Mas não pegou apenas em tinta, quando tinha aquela idade. Também matou; e fez ainda outras coisas piores que não contou a ninguém.
   De qualquer maneira, este homem que agora se vê a si próprio tão novo na foto, este homem agora é muito velho e a fotografia - devido à sua velhice, à perda de domínio dos movimentos - não para de se mover na sua mão, como se não estivesse estável.
   É muito velho e não se envergonha de nada do que fez. Apenas tem vergonha de a sua mão estar a tremer."
 
Gonçalo M. Tavares, in "Short movies" 

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