Mutação

   "Iam e vinham, os visitantes. Alguns voltavam, outros não.
   Lembrava-se da maioria dos que o tinham procurado, ali onde vivia há décadas e os dias passavam iguais. Velhos ou novos, todos queriam beber o seu conhecimento hermético. Alguns, aproximavam-se com cautela e reverência, outros com jactância e uma pose de quem sabia muito. Quando se iam embora no final, todos se quedavam em silêncio.
   Havia membros da mesma irmandade espalhados pelo mundo, em ambientes semelhantes, todos fechados à chave em lugares de onde não poderiam sair sozinhos. Todos ocultando segredos obscuros que por vezes partilhavam com os poucos que entendiam a sua linguagem.
   Um dia a porta debaixo do letreiro «Esoterismo» abriu-se. Mãos delgadas elevaram-se e retiraram-no da prateleira. Era a rapariga que já vira naquela mesma sala, pegando em outros como ele, folheando-os brevemente e devolvendo-os à estante, parecendo não ter encontrado o que procurava. Talvez hoje fosse diferente.
   Ao contrário de alguns visitantes que o abriram pela contracapa à procura de algo que ele não tinha e acabavam por desistir, aquela rapariga pousou-o delicadamente no regaço e começou a ler - tudo. Os dedos finos deslizavam pelo bordo de cada página enquanto os olhos escuros absorviam o que ele há muito encerrava. Até que escureceu e as mesmas mãos delgadas se elevaram para o devolver ao sítio, atrás da porta de vidro fachada à chave.
   No dia seguinte, ela voltou. Trazia um caderno que pousou na mesinha enquanto o ia buscar novamente. De novo as mãos delgadas o seguraram e os dedos deslizaram pelo bordo das páginas - mas desta vez, uma levantava-se a espaços para anotar qualquer coisa no caderno.
   Manhã após manhã a rapariga regressava, folheando-o incessantemente durante horas, fazendo-o sentir-se vivo e quente enquanto ela lia e tomava notas. Há muito que não se sentia assim e começou a ansiar pelo momento em que ela chegava e o tirava da estante. Estar horas naquele regaço fazia-o lembrar-se do tempo em que, como ela, vivia e respirava. Lembrar-se da última vez que alguém o tacara com amor.
   Até que um dia a rapariga não veio. Ficou surpreendido e triste, até se lembrar que nesse dia a biblioteca estava fechada. Resignou-se a ficar de novo confinado àquela estante estreita fechada à chave numa sala recôndita, onde muitos o tinham procurado com curiosidade e ânsia de saber, mas nenhum com tanta paciência e dedicação como ela.
   Nessa madrugada, a luz de uma lanterna banhou a estante. A porta abriu-se e mãos delgadas, as mãos dela, retiraram-no delicadamente da prateleira e pousaram-no sobre a mesinha de apoio, abrindo a página que tinha deixado marcada com finíssimo papel, as mesmas palavras que pronunciara tantos anos antes: as últimas. Depois um baque surdo e o silêncio.
   Sentiu-se rebentar de orgulho. Ela fizera a sua troca para lhe dar algo que ele nunca tivera.
   No dia seguinte a bibliotecária júnior, encarregue de abrir as salas e verificar se tudo estava em ordem, deu com eles: um aberto, pousado numa mesa, o outro tombado no chão.

   - Esta deve ser a única biblioteca onde os livros saem do sítio sozinhos... o que será isto? Humm... «Index»... Não me lembro de ver este, devia estar escondido dentro do outro. Bom, não interessa. São quase nove horas.
   Pegou-lhes sem cerimónia e arrumou-os lado a lado.
   Se ele tivesse lábios, sorria. Agora ficariam para sempre juntos."

Regina Catarino, in "Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia"
Retirado
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