Ponto, parágrafo

"Estou sentado na cadeira do meu quarto, em que penduro a roupa antes de dormir. De resto, nada a não ser o colchão, o candeeiro roubado e o balde para as emergências. Já tive um passarito, mas morreu. Deitei fora a gaiola. O formigueiro que me adormece as pernas denuncia o vagar com que o sol se deixa abater para debaixo da terra. O tempo a passar, parado, e eis-me aqui, neste lugar em deslocamento, a voar em pleno chão. Escrevo o dia inteiro até adormecer, à noite. A cadeira é, pois, um objecto exclusivamente humano, paradoxo desta possibilidade de viver em imaginação. E é, literalmente, sobre ela, que escrevo: não é de todo ridícula esta minha certeza de que a literatura só existe graças à invenção da cadeira! Sou apaixonado por esta ideia e, por isso, nunca mudei de parágrafo ao longo destes milhares de páginas. Imagino a eventualidade remota de alguém vir a ler estas palavras. Está aí alguém? Que ridículo... Dou por mim a imaginar olhares a pairar à minha volta. De vez em quando, troco de lugar com essas presenças anónimas, a ver-me: o quadriculado da luz que trespassa a janela a empoeirar um vulto corcunda. Esta visão é aguda como as arestas dessa artéria de carne e madeira que sou. Morrerei quando deixar de me sentar nesta cadeira. E ela morrerá quando deixar de suportar o peso deste pensamento."

João Bandeira Silva, in Revista Ler nº 125

Comentários