S.O.S.

     Na livraria há uma sala escondida com bancos corridos onde os clientes se abrigam para ler enquanto um clarinete nas colunas de som parece algodão caindo na alcatifa. É um sítio de paz onde uma tosse levantaria as sobrancelhas dos leitores. Num dos bancos está um velho que dorme um sono pós-almoço. Tem bigode, bochechas de vinho e um livro de Anaïs Nin na mão.
     Logo de seguida, estão quatro lolitas literárias - a mais bonita lê Orgulho e Preconceito, a mais pequena Contos, Eça de Queirós, aquela que tem aparelho nos dentes segura um livro cor-de-rosa.
     Chega outro velho. É daqueles homens com unhas compridas, que sacralizam a literatura, julgando alcançar a poesia como ninguém e que, cruzando as pernas, apoiam o pulso no joelho - um gesto que tenta provar a gravidade da sua condição de eleito e que afasta a quarta leitora para outro lugar.
     O velho de bigode acorda.
     Os seis corpos, uns adolescentes, outros decadentes, estão agora alinhados no mesmo banco mas, página após página, as sinapses de cada um criam coisas diferentes: francesas que gostam de cama, inglesas pudicas, portuguesas loiras e singulares que roubam jóias.
     Estes leitores estão agora noutro mundo, não percebem sequer o martelo a bater na rua, não se importam com o rapaz mais giro da turma que não respondeu aos sms ou com o filho que deixou de ligar ao pai bebedor de tinto desde que a mãe morreu.
     Porque quando tudo nos falha - a religião, a política, a terapia, a internet, o amor - só a ficção nos poderá explicar aquilo que ainda não conseguimos perceber. E salvar-nos.

Hugo Gonçalves, in "Fado, Samba e Beijos com Língua"

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