Rua da Adiça

Eram ambos adolescentes, quando se conheceram. Ela, filha única tardia; ele, filho único nem tanto, a crescerem os dois de acordo com os cânones da educação tradicional do final dos anos 50.
As férias grandes, passadas na praia, num uníssono partilhado por eles e por elas - e eram tantos e tantas, todos os anos - eram um momento único para dar largas ao despontar das primeiras hormonas, da sensualidade e do desejo; aproveitadas, sempre às escondidas, para uns beijos roubados e umas carícias inocentes.
Apaixonaram-se. Com aquela paixão de adolescentes julgada única, que parece que nunca vai acabar, que perece o fim do mundo: avassaladora, invasiva.
Os anos foram passando e, um dia, ele casou-se com a Ana Maria, também ela das férias de Verão passadas na praia. Ela não entendeu. Adoeceu. Ficou na cama, no escuro, dias sem conta, com um fim do mundo, diferente e sofrido, dentro da alma.
Depois, habituou-se, foi-se fazendo mulher e, anestesiada e indiferente, dois anos mais tarde casou-se com o Eduardo.
Quando ele chegou da Guiné, da Guerra, telefonou-lhe para lhe desejar que ela fosse feliz. Ele, não era. Encontraram-se. A conversa, agora mais madura, a fluir como se tivessem estado juntos na véspera, pela última vez.
As interrogações e as mágoas, invisíveis e indizíveis, ficaram por dizer, na ânsia de não manchar aquele momento que, nenhum deles sabia, talvez não acontecesse de novo.
Mas aconteceu. Uma, duas, muitas, muitas vezes.
Um amigo dele tinha uma casa por ocupar, na Rua da Adiça, em Alfama. Deu-lhe a chave, e aquela casa, pequena mas cheia de encantos e com vista para o rio, passou a ser o lugar do amor, dos encontros, das dúvidas antigas já esclarecidas, da festa diária do reencontro, que o regresso a casa e à vida, dupla, de cada um, não tinha força para estragar.
Um dia, no momento da despedida, do até amanhã de todos os dias antes de a porta se abrir, a chave não deu a volta na fechadura.
Incrédulos, tentaram a faca, o alicate, a tesoura, a pinça, a lima, a chave de fendas e o martelo. Mas não havia como evitar o inevitável. Estavam fechados por dentro.

Felizes, ainda hoje lá estão!...

Natália Gonçalo, in O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder

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