Poema da Semana
Poema das Dádivas
Ninguém queira ver lágrima ou censura
No reconhecimento da mestria
De Deus, que me deu com grande ironia
Livros e noite pela mesma altura.
Tal cidade de livros quis ceder
A uns olhos sem luz só entendidos
Em, nas bibliotecas dos sonhos, ler
Os insanos parágrafos cedidos
Aos seus cuidados pela aurora. O dia
Em vão lhes dá os livros infinitos,
Árduas como os árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.
De fome e sede (é uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu canso sem destino estes confins
Desta profunda biblioteca cega.
Enciclopédias, atlas, Oriente,
Ocidente, séculos, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.
Lento na minha sombra, a luz vazia,
Vã exploro com o báculo indeciso,
Eu, que prefigurava o Paraíso
Sob o aspecto duma livraria.
Coisa que sob o nome do acaso
Decerto se não esconde é que orienta
isto; outro herdou noutra cinzenta
tarde estes muitos livros e o ocaso.
Ao errar pelas lentas galerias
uso sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, que haverá dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.
Qual de nós dois escreve esta canção
Dum eu plural, e duma sombra apenas?
Que importas, nome, tu que me dominas
Se é indivisa e una a maldição?
Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
No meio duma incerta cinza vaga
Que faz lembrar o sono e o olvido.
Jorge Luis Borges, 1899-1986
Ninguém queira ver lágrima ou censura
No reconhecimento da mestria
De Deus, que me deu com grande ironia
Livros e noite pela mesma altura.
Tal cidade de livros quis ceder
A uns olhos sem luz só entendidos
Em, nas bibliotecas dos sonhos, ler
Os insanos parágrafos cedidos
Aos seus cuidados pela aurora. O dia
Em vão lhes dá os livros infinitos,
Árduas como os árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.
De fome e sede (é uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu canso sem destino estes confins
Desta profunda biblioteca cega.
Enciclopédias, atlas, Oriente,
Ocidente, séculos, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.
Lento na minha sombra, a luz vazia,
Vã exploro com o báculo indeciso,
Eu, que prefigurava o Paraíso
Sob o aspecto duma livraria.
Coisa que sob o nome do acaso
Decerto se não esconde é que orienta
isto; outro herdou noutra cinzenta
tarde estes muitos livros e o ocaso.
Ao errar pelas lentas galerias
uso sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, que haverá dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.
Qual de nós dois escreve esta canção
Dum eu plural, e duma sombra apenas?
Que importas, nome, tu que me dominas
Se é indivisa e una a maldição?
Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
No meio duma incerta cinza vaga
Que faz lembrar o sono e o olvido.
Jorge Luis Borges, 1899-1986
Comentários