Micronarrativa com mulher dentro

UMA MULHER LIVRE resolveu escrever um livro em 45 capítulos que pudesse arrumar confortavelmente no bolso. Esta ideia, contudo, perturbava-a sem que soubesse ao certo porquê.
Durante várias noites não conseguiu dormir a pensar nas razões do seu incómodo.
Enquanto se esforçava por adormecer, passavam-lhe diante dos olhos imagens do rosto da mãe, ainda jovem, de saias compridas, colares e longos cabelos. Do pai, quase sempre estendido debaixo de uma luz moribunda de Verão, belo como um deus que se consumisse aos poucos. Ela e os irmãos a correrem descalços e nus em volta de uma piscina de plástico com patos e flores. Ela, sozinha, na faculdade, a fechar a porta do quarto depois de uma noite de sexo amigo, daquele que não prende. A pintar as paredes da primeira casa, da segunda... enquanto os namorados ficavam estendidos, belos como deuses ainda por consumir. A fechar as portas com dor.
Uma mulher livre quis escrever um livro com a ligeireza do ar e descobriu que era cega. Como se fosse Verão.

Possidónio Cachapa, in Visão nº 879

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