Para 2010, dois desejos: --- e paz

COMO SE TINHA vindo a prever havia séculos, o mundo acabou na passagem de 1999 para 2000. Esse fim foi tão repentino e absoluto que ninguém reparou nele. Aquilo que as pessoas consideravam "a sua vida" foi transferido integralmente para um lugar que já não era o mundo mas que o reproduzia até ao último detalhe.
Os foguetes que foram lançados na meia-noite de 1999 para 2000 explodiram já num não-céu. A partir daí, tudo se processou como antes, mas exactamente ao contrário. Ninguém notou essa diferença radical porque a lógica negativa tinha a mesma forma da positiva. Não se morria, renascia-se; mas, para os mortos, renascer era igual em tudo ao que antes se chamava morrer. Continuaram a celebrar-se as passagens de ano, os aniversários.
Foi só em 2010 que um escritor português de 35 anos assinalou essa mudança e a afirmou num texto de uma revista. Mas ninguém lhe prestou demasiada atenção porque todos julgaram tratar-se de um mero microconto.

José Luís Peixoto, in Visão nº 879

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