Por amor

   "Em Manosque, no Sul de França, todos os anos se realiza um festival dedicado à correspondência. A cidade antiga apura os seus melhores recantos, embeleza-os com a ajuda dos artistas locais e abre-se, com alegria, aos escritores epistolares. Oferecem-se as cartas e os selos. Para todo o lado. Para a porta ao lado, se assim se desejar.
   Dei por mim, ali, sentado, ora numa capela gótica do século XV ora num recanto de flores, ajardinado entre muros e fontes, a escrever cartas improváveis. E as primeiras que me surgiram foram as de amor. Tal como o Pessoa, também eu as sentia como ridículas. Era como mostrar um súbito buraco na meia antes de apresentar o pé perfeito. E ali me custou escrevê-las. Sobretudo aos mais próximos. À família: aos que estão ali, sempre do meu lado, sem me pedirem nada, aos que me estendem a mão quando outros as fecham, aos que me dão abrigo quando os palácios que fiz de nada me voam em estilhaços, levados pelo vento que eu próprio criei. Aqueles que me vão lembrar nas pequenas coisas, como a maneira de chamar a um guardanapo aos três anos, ou na memória do dia em que peguei numa tesoura e fiz o meu próprio e original corte de cabelo. Aos que me amaram, amam e provavelmente amarão até que os seus dias se consumam. Muito para lá da minha eventual beleza, inteligência de espírito ou forma original de observar o mundo. A esses, aos que nos querem por nós próprios, sem influência do tempo, é que é difícil escrever. Porque estamos sempre juntos ou como se estivéssemos sempre juntos. Para sempre.
   Como dizer «amo-te» aos nossos irmãos, pais, às mulheres-de-longa-data, aos maridos-de-há-tanto-tempo?... Aos amantes custa menos: faz parte do jogo de sedução. E diz-se muitas vezes com a Lua na cabaça e os lábios sobre o corpo de cetim. Mesmo que não seja exactamente verdade ou que a eternidade dure apenas aquele momento.
   Há gente que maltrata os filhos por amor. Para que aprendam a distinguir o bem e o mal. Gente que diz: «Podias fazer melhor», à amostragem dos feitos conseguidos. Ou: «Não te deixo ir. Para te proteger»... E, ingratidão máxima do género humano, os meninos e meninas só ouvem: «Não te amo». E passam os anos que lhes restam a tentar perceber a razão por que não agradavam a estes progenitores pressupostos para o amor.
   Há muitos anos vi uma mãe que se atirava sobre o féretro da filha morta, lançando em brados a dor que lhe explodia no peito, o corpo da filha como uma broca de dentista a estraçalhá-la por dentro... E só me vinha à cabeça o seu olhar severo, semanas antes, a sua voz amarga a censurar-lhe os gestos, os cabelos longos e escuros da rapariga a baixarem-se em direcção ao chão, diminuídos pela falta de jeito que julgava transportar, a crer nas palavras duras da mãe. E, agora, ali estavam as duas: uma estendida, os olhos fechados e as mãos sobre o peito, a outra a rolar-se em dor, sem lhe conseguir dizer que sempre a amara.
   Andamos todos a correr, entalados dentro dos carros, o cigarro numa mão e o telemóvel na outra, enquanto no banco ao lado seguem os companheiros em silêncio e, no de trás, as crianças que se disputam, sem palavras, com monstros nipónicos, soltando apenas, de vez em quando, misteriosos gritos, em língua desconhecida.
   Naquele dia, em Manosque, escrevi aos que amava. E disse-lhes isso mesmo, que a minha vida sem eles teria um sentido menor e diferente. E agradeci-lhes por se postarem de sentinela nas minhas noites escuras, as passadas e as futuras.
   À minha volta, as flores calaram-se para deixarem ouvir apenas as fontes. E, por uma vez, fui descansadamente ridículo."
 
Possidónio Cachapa, in "O meu querido titanic"
  

Comentários