Libris in Ténebris

   "A última luz desligou-se, e o edifício ficou finalmente entregue à escuridão. Ouviram-se os tacões dela a ecoar pela sala e a porta principal a ser arrastada até fechar com um estrondo. Um bom som para acabar um longo dia. O som adequado para começar uma longa noite. Mal ela sabe que o verdadeiro trabalho só começa quando ela sai. É à noite que os livros ganham vida.
   Uma pequena porta abriu-se no fundo da biblioteca. Num abrir e fechar de olhos uma sombra saiu de lá e voltou a esconder-se entre as estantes. Apenas o restolhar das folhas dos livros indicou que algo se tinha passado. No segundo seguinte já tudo tinha voltado ao normal. Quase.
   Se alguém estivesse presente na sala poderia reparar numa sombra a esquivar-se por entre os corredores de livros. Mas sempre pelo canto do olho. Esta sombra tem muito a fazer, e não pode parar por mero anseio.
   Um riso ecoou pela sala, quase escondendo o barulho de asas a bater. Mas a mesma calma manteve-se, as estantes quietas como se feitas de pedra. Pedra ou madeira, não são elas que interessam.
   As janelas altas eram a única fonte de luz. Os candeeiros na rua teimavam em não desligar, prolongando a falta de escuridão lá pelas suas razões egoístas. Nada que não fosse normal, mas a espera antes do momento crucial é a parte mais difícil. Mesmo assim, o silêncio continuou.
   A biblioteca estava diferente. Demasiado silêncio, como se todos tivessem sustido a respiração enquanto esperavam por algo. Como o momento após o relâmpago, antes de inevitável chegada do trovão.
   Com um suspiro, a primeira luz desligou-se. Algo correu pela sala, passos rápidos e curtos interrompendo o silêncio. A segunda luz seguiu-se. Uma estante abanou de antecipação. Ou será que…? A terceira, quarta, e última luz apagaram-se como se de uma corrida se tratasse. Só a Lua se manteve no lugar, mas que se há de fazer. É o suficiente. Tudo estava pronto.
   De repente a biblioteca encheu-se com o barulho de asas a bater. Asas? Não. Folhas! Centenas, milhares de folhas a bater enquanto que todos os livros enchiam o ar. Algumas estantes quase caíram ao chão com o impulso dos livros a saltar. Mas os livros continuaram a deixar os seus poisos, voando como se clamando por liberdade. Subiram no ar e desceram, fazendo piruetas que nenhum livro sensato faria. Mas quem os pode culpar…
   E a observar tudo isso, uma sombra encontrava-se no meio da sala, de braços abertos, a rir-se. Podia ser uma criança, um adulto. Podia nem sequer ser humano. Quem sabe. Realmente, a bibliotecária não tem muito trabalho. Mal ela sabe o que está a perder. Afinal, é à noite que os livros ganham vida."
 
Diana Sousa, in "Antologia Fénix de Ficção Científica"
 

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