Devolvam-me à Terra!

   "Descobri que, afinal, odeio afastar-me de Portugal. O problema não é tanto as saudades de casa e dos nossos confortos de alma - o cozida à portuguesa, os jornais do fim-de-semana, o futebol ao domingo e A Bola à segunda-feira - mas talvez antes o facto de me afastar da Pátria pelo ar. O que me angustia é ver desaparecer o nosso torrãozinho de terra, tão pequeno e tão indefeso lá em baixo, enquanto eu, cozidinho de terror, desapareço no meio de uma nuvem, o meu destino, os anos perdidos e os que ainda tenho a haver, tudo, irremediavelmente tudo, suspenso dessa coisa a que João Cabral Melo Neto chamou «um prodígio» que, quando «caí subitamente, me transforma em notícia». Nessas alturas, mesmo antes de os primeiros poços de ar remeterem a um absoluto silêncio aterrorizado, apetece-me sempre ir ao cockpit e dizer ao comandante: «Não se assuste V. Exa., que isto não é um assalto, é apenas um pequeno desvio. Sucede que houve aqui um tremendo equívoco: eu convencido de ir entrar a bordo do Sud-Express, quando vejo o comboio levantar voo e aqui vou eu que não posso ir, porque a minha religião me proíbe em absoluto deslocar-me pelo ar. Portanto, V. Exa., perdoe o incómodo, mas vai fazer o favor de voltar para trás e pousar-me ali em baixo, de onde eu nunca devia ter saído."
[...]
 
Miguel Sousa Tavares, in "Não se encontra o que se procura"

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