Quem tem medo dos livros?

   "Nesta era da Internet e das redes virtuais, em que toda a gente pode ter acesso a informações diversas e estar sempre ao corrente das novidades, julgava que já não haveria tanto lugar para os livros, o que me preocupava obviamente, pois eles são importantes para mim, em todos os aspetos. No entanto, os últimos tempos trouxeram-me um grande alívio, embora pelas piores razões. Afinal ainda há gente que treme por causa de um livro. E voltei atrás no tempo.
   Quando os militares deram o golpe de Estado no Brasil em 1964 para apearem do poder o democraticamente eleito João Goulart, abateu-se uma caça ao livro dito subversivo como há muito tempo não se via naquele país. Dois eram os mais visados pelos facínoras que entravam pelas casas dos suspeitos de esquerdismo. Um, Os Miseráveis de Victor Hugo, andando as secretas (pois eram várias, para umas apagarem o rasto das outras) à procura do perigoso escritor que tinha ousado descrever a gente pobre que morava nalguma favela. Alguém mais avisado deve ter explicado aos bófias e militares que Victor Hugo era um escritor francês, morto em 1883, e que portanto dificilmente o iam encontrar no Brasil. Desorientados, os milicos viraram as baterias para o livro O Vermelho e o Negro, tendo o seu autor, Stendhal (falecido ainda antes em 1842), sofrido grande perseguição por ousar pôr a palavra «vermelho» (que era o mesmo que dizer «comunista» no título de um livro. Estas diligências viraram anedota mundial, depois de a embaixada francesa em Brasília protestar pela perseguição feita às ossadas dos seus prestigiados escritores.
   Mas acham que os ignorantes aprendem?
   Queimas de livros em fogueiras foram comuns na História da Humanidade. Desde a Inquisição da Igreja Católica aos nazis do Hitler que estorricavam milhares de preciosos documentos, temos fartos exemplos. Mas isso era na altura em que o livro era o meio mais importante de fazer divulgar ideias. Hoje não tem tanto mérito por causa da concorrência. E talvez o último que tenha gerado movimentos de massas tenha sido O Pequeno Livro Vermelho de Mao, atualmente uma relíquia. Mesmo esse livrinho, que era uma coletânea de frases do velho líder, apenas serviu como símbolo da Revolução Cultural dos anos sessenta do século passado. Há quem diga que foi o último livro a provocar uma revolução. Acho que apenas foi um instrumento para generalizar a luta pelo poder. Nunca nenhum livro provocou uma revolução, com exceção questionável da Bíblia , quando foi traduzida para alemão por Lutero e impressa na tipografia inventada por Gutenberg.
   No entanto, ainda agora gente que tem medo que um livro provoque uma revolução, promova um golpe de estado ou faça antecipar a menstruação das meninas. Por ser considerado objeto perigoso pelos analfabetos que são escolhidos para espiar os outros, em alguns setores da sociedade os escritores são olhados de lado, como se tivessem o ferrete do refratário, do rebelde, do revoltoso, e as suas obras perseguidas em certos sítios. Por exemplo em cadeias onde são confinados os curiosos que querem aprender coisas nos livros proibidos. E alguns desses livros continuam a merecer desconfiança, como acontecia na Angola colonial.
   O Homem vai evoluindo, diz-se. Mas alguns continuam a ter medo de livros. Ou a servirem-se deles como desculpa para atividades censuráveis. A diferença parece pequena.
   Se não revelasse tamanha pequenez da alma humana, dava para rir. Porque o ridículo faz rir. Em certos casos, só dá vontade de chorar, porque alguns sofrem por causa de um livro."

Pepetela, in "Crónicas maldispostas"

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