A VELHA ESPERANÇA MORREU SENTADA

   "Os muros fazem os ladrões. A Velha Esperança ensinou-me isto - sem jamais ter lido Bakunine -, na mesma tarde em que me contou a autêntica história do soba Mutu-ya-Kevela. Ensinou-me muitas outras pequenas verdades, tão expostas, tão evidentes, que quase ninguém as vê. «Este país», disse-me, «é como um embondeiro: tem as raízes para o céu e as folhas debaixo do chão». Dava exemplos: «Queres ver como está tudo trocado? Os brancos chamam-se Pepetela, Ndunduma, Chassanha. Os pretos chamam-se Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos, Mendes de Carvalho, Jorge Valentim».
   São coisas de que me lembro às vezes, com um sorriso, quando é suposto não ter de me lembrar de nada. Lembro-me dela, outra vez, agora que é demasiado tarde. Soube há pouco que a velha Esperança morreu em Luanda, sentada na mesma cadeira de verga onde eu costumava encontra-la, possivelmente diante do mesmo crepúsculo profundo e irremediável. Ela achava que não morreria nunca.
   Foi em 1992. Esperança Job Sapalalo tinha ido a casa de um dirigente buscar uma carta do filho, em serviço no Huambo, quando começou o tiroteio. Quis regressar a casa mas não a deixaram. «É loucura, mais velha, faça de conta que está a chover. Daqui a pouco passa».
   Não passou. Chuva? Seria então chuva muito brava. O tiroteio, como um temporal, foi ficando cada vez mais forte, mais cerrado, foi crescendo na direcção da casa. A velha Esperança não se importava de recordar o que aconteceu naquela tarde:
   - Vieram. Entraram dentro de casa e todos nós fomos batidos. Um dos deles, um rapaz com fitinhas vermelhas amarradas à cabeça, perguntou o meu nome. Disse-lhe, Esperança Job Sapalalo, e ele riu-me - «a esperança é a última a morrer».
   Alinharam o dirigente e a família no quintal da casa e fuzilaram-nos. Quando chegou a vez da Velha Esperança não havia mais balas. «O que te salvou», gritou-lhe o jovem das fitinhas, «foi a logística. O nosso problema há-de ser sempre a logística». E mandou-a embora.
   O que a salvou, achava ela, fora a Senhora da Muxima. A velha era uma devota da Santa. Devota recente, diga-se, desde que dois anos antes subira o rio até à histórica igreja na companhia de Dona Maria da Fé, Nga Fésinha, uma das últimas bessanganas (senhoras de panos) da região de Luanda. Esperança Job Sapalalo convivia com os santos com o mesmo espírito prático, e a idêntica seriedade, com que durante a vida inteira lidara com os comerciantes ao seu serviço. Um trato era um trato e não admitia falhas. Ela pagava as suas súplicas em velas e em missas. Os santos que cumprissem com a parte que lhes competia. No caso de falharem dirigia-se à igreja e gritava com eles, em umbundo ou português, dependendo da patente do santo.
   Depois que a tempestade serenou os filhos tentaram embarca-la para Lisboa mas ela opôs-se a isso com uma ferocidade que espantou toda a gente: «A Esperança não pode morrer», dizia, «hão-de morrer todos primeiro». A certeza de que era invulnerável só não fez dela uma mulher perigosa porque daquele corpo cansado já não podia vir grande dano.
   «Agora resto eu», disse-me Dona Fésinha: «E estou quase cega, mas ainda sou bem capaz de ir à Muxima pedir à Senhora que salve o nosso país». A igreja foi restaurada há poucas semanas. Ficou bonita. Pode ser que isso tenha apaziguado a Santa. Vá lá então, Nga Fésinha, faça mais esse esforço, e se não der certo, olhe, não se acanhe, ralhe com ela."
 
José Eduardo Agualusa, in "A substância do amor"  

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