Verão

«Só o verão vale a pena ser vivido», Rilke
 
 
   "Vejo: caminhas até à borda da água e o reflexo da luz na água torna confusa a tua silhueta, como se fossem duas pessoas que caminhassem num só corpo. Mas quando mergulhas e desapareces dentro de água, as duas pessoas fundem-se numa só e tudo se torna nítido de repente. Sei o que sentes, agora. Posso fechar os olhos e sinto-o também: a leveza da água sobre os ombros, a consciência das coisas que tocas com as mãos, as pedras e a areia grossa do fundo. Os peixes que passam diante do teu olhar, a certeza de que a vida existe quando, por um instante, descemos a este mundo submerso que não é o nosso e depositamos o peso que trazemos do mundo que é o nosso e assim nos reconstruímos, porque a água tudo limpa.
   Não vejo: fechou-se a marca da água que se abrira à tua entrada, um abismo líquido interpôs-se entre nós, um prenúncio de catástrofe manchou a luz sem sombras de um dia que julgávamos eterno. Posso ficar deitado a olhar um céu absolutamente azul, posso procurar a luz do sol e olhá-lo sem medo até que ele se transforme em milhares de pontos vermelhos, como lágrimas em desordem. E posso fechar os olhos sabendo que agora nada mais acontecerá, para sempre.
   Enquanto o Verão passa e não regressam os que mergulharam no fundo do mar, a praia é como um tempo suspenso, difuso e pouco nítido, atravessado por sons familiares como os gritos das crianças à borda da água ou a voz cantada do vendedor de gelados. Qualquer outro ruído estranho tornaria claro o que queremos fluido, perturbaria a única paz que se tornou possível, a que advém do irreal.
   Em Setembro virão as marés vivas e depois o Outono começará a despir as árvores, antes que um céu plúmbeo se abata sobre nós e uma chuva sem remorsos varra da nossa pele os últimos vestígios de sal. A partir daí, ficamos à espera, outra vez. Pelos céus azuis, pelos peixes prateados, pela limpidez da água, pelos risos das crianças. Não quero que desesperes na espera: haverá sempre Verão, sempre, para além de nós mesmos, e por mais demorado que seja o regresso." 
 
Miguel de Sousa Tavares, in "Não te deixarei morrer, David Crockett"

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