O DOM DOS ESCRITORES

   "Falar de coisas belas que resultam do nosso dom de escritores parece coisa de pedantes e gente vã. Platão e Aristóteles eram pessoas como outras quaisquer, rindo com os amigos e sofrendo com eles se algum mal sucedia. A parte menos séria da vida era a obra com que se divertiam. E se escreviam sobre política era como se propusessem as regras dum asilo de loucos.
   O melhor dum escritor é ser negociável no entendimento, comum no conviver, justo no aconselhar, benigno no julgar e sempre aberto perante as glórias. É soberba esperar muito do que se faz por talento, porque se faz por gosto. E um gosto não é medida do trabalho humano. Este é, sobretudo, esforço e sacrifício e passo do destino que nos acabrunha. O escritor é hoje um modelo de ignorância, e não um trajecto de sabedoria. Mesmo quando se faz erudito, converte-se num mercado de bugigangas, com muitas coisas brilhantes que apregoar e poucas valiosas que oferecer. Também não é bom ser austero demais, nem culto, que pareça solidão fingida. Bom é agradecer a luz do coração com que se fazem amigos. Bom é amar em pequenas porções, momentos, pessoas e tudo que não faz costume. Arregaço as mangas, não para escrever um livro, mas para me acotovelar com a multidão. Oh gente tão lenta em perceber que a amamos! É crueldade dar aos livros o tempo com que nascemos. Construir a natureza é o que nos faz calcular a sua vastidão."
 
Gólgota, 28 de Maio de 1990
 
Agustina Bessa-Luís, in "Caderno de significados" 
 

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