SOPHIA

SOPHIA - I
 
   "Havia duas mulheres em Lisboa que me davam que pensar. Uma delas já há muito que deu um passo para além do seu próprio caminho, quero dizer que morreu. Lembro-me dela, com uma blusa de musselina rosa, quase bege, dessa cor química e perfeita que é inventada a partir da imaginação e não copiada da natureza. Uma cor tão doce e aristocrática tinha o dom de corrigir o orgulho do coração, uma virtude de rainha. Há mulheres que têm virtudes de rainha e por isso são mal compreendidas.
   Sophia é também assim. Creio que é, não tenho a certeza. Um dia, eu disse, num autografo, parece-me que foi: «Nascemos para nos admirarmos e não para ser amigas uma da outra.» Admirar uma pessoa tem muito de ascético, é como vê-la sempre igual no seu pedestal ou no seu trono. O mundo passa por essa admiração como o vento passa pelas árvores; brandamente ou rugindo, a verdade é que a admiração não é mundo nem árvores, mas sim a musical forma do que é sublime.
   Os versos não me dizem muito, mas as pessoas que os criam sim. São pessoas que parecem viver no fundo das florestas densas onde corre um fio de água, onde o pio duma ave rompe o silêncio tão docemente que não se chegou a ouvir. Os poetas são o sacrifício que a vida exige para ter direito a ser continuada por gerações de gente insaciável. Gente que é um rascunho da única realidade que vale a pena, a da poesia. Isto também é um rascunho, prosa austera e ligeira. Mas a admiração corre como o Nilo, de que não se sabe ainda quais são as fontes."
Lisboa, 10 de Outubro de 2001
 
SOPHIA- II
 
   "Aquilo que me ligou à Sophia de Mello Breyner não foi a amizade, que resulta dum contexto de ideias ou duma compatibilidade histórica; quer dizer, do facto de sermos contemporâneos, sujeitos a uma mesma disciplina moral e cultural. Não era isso. Nós tínhamos a capacidade de nos impressionarmos; como as crianças têm.
   Thomas Mann, a dado momento da sua vida, ao ver uma criança a repetir sempre a mesma brincadeira, pôs-se a reflectir sobre isso que lhe parecia extraordinário. Era assim connosco. Tomávamos a sério coisas que no fundo nos divertiam. A Sophia e eu não sabíamos o que era a solidão. O concreto era a aventura, e a poesia era a sua forma de ser concreta.
   Falando-lhe eu um dia do Marquês de Pombal e da atitude pessoal que teve no processo dos Távoras, simplesmente não me quis ouvir. Não gostava de discutir as coisas que não eram da sua linhagem intelectual.
   Ela dizia que há sempre um pouco de vingança na boa conduta de alguém. Debatíamos isto, ela a tomar chá e a fumar. Eu replicava que não há nada pior do que o fastio de se ser sensato. Era assim que nos entendíamos. Mas raramente conversávamos. Às vezes pedia-me conselhos e dizia-me: «Não quero bons conselhos, desses estou até aos olhos. Antes aqueles conselhos que se esquecem depressa como o vento que nos desarruma o cabelo.» Era assim que nos entendíamos. Mas raramente conversávamos. Dava muito trabalho defendermo-nos do ciúme de quem disputava a amizade dela. A outra amizade.
   Uma coisa era certa. Acabávamos sempre por estar de acordo sobre o Marquês: «Um chato.»
   Era assim connosco. Era bom."
14 de Janeiro de 2005
 
Agustina Bessa-Luís, in "Caderno de significados"


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