Havia muito sol do outro lado

   "Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.
   - E se fosse para mim?
   Os amigos faziam troça:
   - No consultório do teu dentista?
   Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
   - É claro que não vou atender - disse alto. - Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.
   O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.
   - Está?
   Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.
   - Posso falar com o Gustavo?
   A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha o direito de ser o Gustavo (fosse o Gustavo quem fosse).
   - Você não vai acreditar - disse. - A sua chamadas foi parar a uma cabina telefónica.
   Ela riu-se. Meu Deus - pensou Ruben - era como beber sol pelos ouvidos.
   - Não brinques! És tu, Gustavo, não és?...
   Sim, ele tinha o direito de ser o Gustavo:
   - Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.
   Quase acrescentou: «pensei que pudesse ser para mim». Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir-se:
   - Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?
   Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.
   - Nunca vi nada com esta cor - sussurrou. - Só espero que Deus me dê alegria de morrer no mar.
   Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:
   - Desculpe. Que vergonha... Nem sequer sei como você se chama.
   Ruben apresentou-se:
   - Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.
   Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe muito cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones."
 
José Eduardo Agualusa, in "A substância do amor"

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