Viagem através do Sol

   "Uma criança sentou-se na tarde agreste e pintou o sol. A sala onde a criança estava, ficou iluminada e fresca. Depois, a criança misturou as tintas, a água, o sonho e, num grande cartão, lentamente, foi erguendo prados, lezírias, florestas, aves, flores inesperadas. Então, chamou o irmão que a um canto assistia à criação deste mundo original e disse: «Vamos fazer uma viagem!»
   E entraram os dois com seus olhos e sua imaginação pela tela dentro, alheios ao espanto de quem os contemplava nesse itinerário súbito da tarde de frio.
   Misteriosamente, trocavam palavras de silêncio, encontravam-se com anões, gigantes e animais estranhíssimos, metade bichos que, ora os assustavam, ora os desvaneciam.
   A certa altura a menina disse:
   - Vamos chamar a mamã?
   E o menino respondeu:
   - Não podemos. É muito alta. Não cabe nestes caminhos: ia pisar tudo e estes bichinhos ficavam tristes. Muito tristes.
   A mãe, imóvel numa cadeira, ali mesmo à entrada desse lugar impenetrável e inacessível, ouvia o diálogo e tentava fazer-se pequenina para ir com eles. Mas não conseguia. Esforçava-se imenso e não conseguia. Tinha uma grande vontade de chorar por estar ali sozinha à beira daquele milagre mas as lágrimas não lhe adiantavam. Entretanto, os meninos, sempre a caminharem, tinham chegado ao mar. Era um mar sem abismos, sem ondas, sem temporais. Um mar susceptível de ser atravessado pelos pés levíssimos de quem o descobria.
   - Vamos ao fundo deste mar! - disse a menina.
   - Cá em cima é mais fresco. Lá em baixo há peixes grandes e escuros. Mordem, os peixes.
   - E a mamã? - insistia a menina, já perturbada pela lonjura a que devia estar de casa, perturbada pelo bibe molhado, aflita com as algas verdes que se lhe colavam ao rosto.
   - Lavamos-lhe uma flor do mar. Ela fica contente se tem uma flor.
   - Vamos já embora? - tornava a menina.
   - Não. Só quando formos muiiiiiito velhos.
   A menina calou-se. Estava séria. Estendeu-se ao lado do irmão na areia branca daquela praia tranquila e distante.
   Sentia-se muito cansada e adormeceu.
   Então, amorosamente, o irmão tapou-a de folhas e flores imaginárias e ficou ali a velar-lhe o sorriso.
   Quando reparou na mãe, estremeceu ligeiramente. Tinha os olhos brilhantes e, dos cabelos, escorria-lhe um perfume a sol e azul. 
   Sobre a tela, encostada a um armário, a noite começava a diluir em sombra toda a floresta e o dorso dos animais marinhos erguia-se também numa respiração tranquila."

Maria Rosa Colaço, in "Não quero ser grande."

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