FALAR SOZINHO

   "Falar sozinho. Ir pela rua, a falar com ninguém e com todos. Fazer parte do mundo, chamar o mundo para a vida, conseguir que nos oiça. Dizer, público e raso, o que se não disse na intimidade. Fazer contas à vida e proclamar apenas os resultados, as consequências, as decisões.
   Falar com ninguém e com todo o mundo, pelas ruas da cidade... Assim o homem que vem, passeio fora, e diz inesperadamente: «Pode lá ser!... Pois se eu penso que...» E a artista dos teatros ligeirinhos do Parque, agora gloriosa e derrotada, que põe a mão no peito, de cansaço, ao subir o Chiado, e murmura: «Isto de a gente envelhecer...» E eis aqui o poeta a compor pedaços de futuros poemas, sem editor que se saiba, e a declamá-los, em pleno dia, às sereias de bronze dos lagos do Rossio. «Ah, se eu voltasse atrás!», reprova-se aquele velho, e logo se encoraja: «Não. Ainda é tempo de fazer o que se deve». Que foi que ele não fez?
   Falar sozinho... Até os que vão calados falam. Pela forma de andar, pelas expressões, pelos gestos, ressoa um constante falar da multidão pelas ruas da cidade. Ouvem-se bem as palavras. Até, às vezes, sucedem diálogos entre uns tantos que param diante de inesperado acontecimento e falam mudamente de uns para os outros. Depois, lá vão, a continuar ainda em frases sem sons a incompreensão, a surpresa, o espanto.
   Há quem sorria dos que falam sozinhos... Passe e feche os ouvidos, sorria apenas, como se encontrasse pela frente pobres diabos que vogam, alheados, no acaso dos sonhos. Maneira distraída essa de fingir que se escapam aos próprios problemas, aos próprios sonhos.
   Sorrir do que se ouve na rua é estar dormindo. Não por muito tempo. O sonho virá. E há-de transformar-se em realidades. Em palavras. Um dia destes havemos de ouvi-los.
   Quem pode escapar? Quem de nós todos, não falou já, alto e bom som, sozinho na vida?
   E esta crónica não será também um falar sozinho pelas ruas da cidade?"

Manuel da Fonseca, in "O vagabundo na cidade"

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