O pânico de cu azul

   "Falta um dia para o Verão. Todas as moscas e melgas nascem, voam e picam com o mesmo belprazer de que gozam há séculos. Mesmo assim há moscas e moscas. Há as chatas de sempre, cheias de energia e capazes de fazer slalom entre sucessivos golpes de jornal enrolado, que pousam na manteigueira só para a conspurcar.
   Depois há umas moscas estranhas, de cu verde ou azul, que zumbem esganiçadas de parede em parede. Inteiramente nojentas, estas primas afastadas de varejeiras são moscas que não sabem estar em casa.
São moscas selvagens. Não têm chá. Até as moscas têm medo delas. Quando entra um cu azul, espavorido, como se possesso, as moscas caseiras fogem janela fora. Algumas delas vão parar directamente aos bicos dos andorinhões em vôos rasantes. É preferível.
   As common house flies, para lhes dar o nome inglês, deixam-se matar, eventualmente. Havendo pontaria, persistência e vontade genuína de matar por parte do perseguidor humano, elas até se matam bem. Já as varejeiras tresloucadas - é isto que faz mais medo - nem sequer querem ficar em nossa casa. Entraram lá por engano em pleno shuttle entre dois esterqueiros. Estão assustadas («mas que raio de lugar é este, tão terrificamente limpo?») e isto leva-as à histeria.
   E a nós também, abrindo as janelas todas enquanto elas ressaltam nos vidros, estupidamente iludidas, ainda não tendo aprendido a diferença entre a aparência do ar e a do vidro, que é a primeira coisa que sabe uma mosca normal."

Miguel Esteves Cardoso, in "Público (20/06/2014)"

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