Limões e Livros

   "«Tem limões?», perguntámos a uma vizinha nossa. «Não», respondeu, acrescentando logo «só se eu for apanhá-los...».
   «Deixe estar», dissemos, o que só lhe deu alento. «Então porquê? O limoeiro é já ali», disse ela, apontando para uma vaga proximidade.
   «Então está bem», fomos coagidos a responder. Quando entrámos no carro e a convidámos a vir connosco ela lembrou-nos que «andar faz bem».
   Não era já ali. Era até bastante longe - mas perto para ela. Suámos e submetemo-nos à viva pertinácia daquela senhora.
   Desapareceu atrás de uns pessegueiros durante uns bons minutos e reapareceu com o avental cheio, a rir-se como uma rapariga do campo que pregava uma partida a dois inocentes citadinos, anunciando «não tenho é saco de plástico», sabendo perfeitamente que nós não sabemos andar sem ser com um saco de plástico nas mãos.
   Despejou uma dúzia de laranjas de S. João (as que «vêm tarde») e uma dezena de limões. Para o regresso abriu uma laranja para partilharmos: «Mata a sede!»
   «Quanto é?», perguntámos, subitamente felizes. «Dois euros», respondeu. Quando já estávamos no carro perguntou-me quanto custava «o seu livro». A Maria João disse «quinze euros».
   A vizinha nem pensou: «Está bem. Traga-me um.»
 Nunca me senti tão respeitado em toda a minha vida. Compreendeu a nossa semelhança. Fiquei boquiaberto que não soube responder. Ela preencheu logo o silêncio, desconfiada: «Ou não pode?»
   Posso e vou, com toda a vaidade e laia de quem vende."

Miguel Esteves Cardoso, in "Amores e saudades de um português arreliado"
   

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