O Coração que nunca existiu

     Da janela observei o terno caminhar de um casal, de mãos dadas e iluminado por discreta felicidade. Ele sorria; o olhar dela estava assinalado por suave esplendor. Calculei a idade do casal: sessenta anos?, setenta anos? Ambos me pareceram, de repente, vultos imateriais suspensos no ar, no tempo, mas protegidos de lirismo naqueles oscilantes momentos. Fui invadido por uma impressão de profunda doçura. E revi o casal como se fora jovem, sempre de mãos dadas, sorrindo e conversando levemente sobre futilidades imprescindíveis. Como sou um homem melancólico e medíocre, às vezes invento realidades, às vezes sinto o perfume de coisas antigas, e ouço músicas que dancei em bailes populares, e celebro na memória os pomares do lado de lá de Monsanto, e o luar a balançar-se nas ondas do rio.
     Mas não era para dizer estas vulgaridades que lhes escrevo. Proseio em tom menor, e pretendia falar-lhes de ruas e de pessoas rápidas, dos ciganos Mayas que viviam na calçada, dos cavalos ligeiros que trotavam no empedrado e de cujos cascos saltavam faíscas. Talvez escreva para remontar os anos mortos e procurar um pouco de consolo na recordação calorosa das raparigas eternamente jovens, eternamente cheias de sol.
     Queria contar-lhes da pastelaria do senhor Zuzarte, um homem possante e irónico que estava sempre a ler um livro desde que não houvesse clientes para atender. A pastelaria ficava num cotovelo da travessa, a dez metros da qual se erguia um carvalho; em redor desse carvalho a junta de freguesia mandara construir um banco corroido; nesse banco corroido, nos dias quentes, sentavam-se alguns dos velhos da rua; a rua era uma rua cheia de velhos que se deixavam embalar por lembranças; mas as lembranças entristeciam-nos.
     O senhor Zuzarte, quando novo, envolvera-se em política, estivera preso, mas não gostava de falar nisso. Permanecera, contudo, no seu íntimo o gosto da liberdade, uma compaixão subtil mas calorosa pelos outros. Enviuvara e ficara submerso em densa e penosa tristeza. Naquelas horas em que o pesar se tornava numa insistência dolorosa, cantarolava constantemente a mesma quadra:

Em funesta decadência
Tive minha mãe amada
Veio o poder da ciência 
       Transformou o mal em nada

     Queria apoiar-se em que convicção? Com o varar dos anos, compreendi que o senhor Zuzarte alimentava uma vontade infantil e absurda de nos dizer que valia a pena ter sonhos; que a esperança tem sempre razão; que os homens, quando querem, conseguem tudo quanto querem. Um dia, o senhor Zuzarte decidiu baptizar a pastelaria, até então conhecida, modestamente, pela pastelaria do senhor Zuzarte ou, então, pastelaria da calçada.
     Escreveu em papelinhos que enrolou numerosos nomes, para isso copiando-os de anúncios publicados no Diário de Notícias. Enfiou-os numa caixa de sapatos e pediu a uma miúda que retirasse, dom monte de papelinhos, apenas um. Desenrolou-o e, então, os circunstantes tiveram consciência da comovida beleza do momento. O nome escolhido, Coração, possuía o encanto solitário, um pouco tonto, porém, belo, de um prolongado desejo e de um imenso desamparo. Ninguém riu, ninguém chasqueou, ninguém esboçou sequer um sorriso sardónico. Saíram num cortejo de silêncio acabrunhado.
     A pastelaria já não existe. Creio mesmo que nunca existiu. Perdoem-me: é Verão, invento coisas, e só escrevo assim para não aborrecer os outros.

Baptista-Bastos (1934-2008), in "A cara da gente"

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