As Férias da Família Negrão

     Negrão decidirá:
     - Este ano passamos as férias na Madeira.
     Não que o seduzissem as delícias de um veraneio naquela ilha bela como uma ruína do paraíso. Negrão enfadava-se com estas delicodoçuras de poetas citadas na propaganda turistíca. E ainda mais o agastavam essas mariquices desde que Benvinda, desastradamente orgulhosa de ter gerado um poeta, lhe confidenciara que o rapaz atamancava as rimas.
     Abastado negociante de vinhos, o pai de Adriano só na esfera destes interesses dava ao atrelado familiar o ensejo de se aborrecer nas margens vinhateiras do Vesle  ou de bocejar nas esplanadas de Angolema enquanto Negrão esfalfava um franciú protocomercial entre as videiras e as adegas.
     Desta vez o pretexto turistíco para esfolar contratos vantajosos era a Madeira, onde Negrão esperava aliciar em jantaradas de relações públicas os produtores do velho néctar da Rota da Índia.
     Como de costume, Benvinda, engoliu a decepção. Lá se iam outra vez as desejadas férias em Maiorca, onde sonhava verter uma lágrima romântica no ninho de amores de Chopin, que prendadamente chegara a arranhar no 4º ano do Conservatório. Mas prontamente arrancou dos refegos da submissão o seu enlevo pelas flores. Astúcia dolorosamente adquirida à custa de compreender esta lógica irrepreensível do cônjuge: sendo Negrão vergôntea de uma família de republicanos históricos, considerava o despotismo um aleijão de talassas. Para exercê-lo em boa consciência liberal socorria-se da cúmplice obediência da consorte, amargamente mascarada de alegre voluntariado. As estrelícias e os antúrios foram as imagens floridas deste tragicómico entusiasmo com que Benvinda fazia os seus desejos de Negrão. E, para melhor dominar a indústria da sua obediência, comprou um álbum florístico da Madeira.
     Denodada quão velozmente, pôs-se Benvinda a preleccionar a Laurisilva. Não para Negrão, que, vendo em tais pieguices a exposição do útero que modelara as mulherenguices de Adriano, contra elas se couraçava de hun huns impacientes. Falava para os filhos. Sobretudo para Adriano, junto de quem ganhara o prestígio de ser a vítima admirável daquele penedo de egoísmo que ulcerava a sensibilidade do rapaz. Foi, pois, com carinhosa atenção que Adriano se dispôs a ouvir a mãe divagar sobre os fetos, orquídeas e pampilhos da Laurisilva.
     Com este exagero do seu improvisado interesse pela botânica, Benvinda pretendia persuadir o filho, cuja hostilidade surda pelo pai a afligia, de que as suas férias na Madeira eram o melhor presente que Negrão me podia dar. Por sua vez, Adriano, para não humilhar a mãe, prestava-se a coonestar-lhe o forçado encantamento com o seu próprio entusiasmo perante a perspectiva de ir conhecer uma ilha. Ele que gostava do branco se o pai preferia o preto e até se fizera raivosamente monárquico desde que fora ver ao dicionário o significado da palavra com que Negrão exprimia o seu asco pela canalha conservadora. Mas descobriu que talassa era um epíteto depreciativo aplicado aos monárquicos. Adriano, que tinha então treze anos, bandeou-se com raça detestada pelo pai. Atreveu-se mesmo, um dia, a enfurecer Negrão, pondo-se a ler com ostentivo interesse, na sua frente, um manifesto da Juventude Monárquica que circulava no liceu.
     Alertado pelo aspecto do papelucho, Negrão arrancou-o das mãos do miúdo. E verificando, esgazeado, a proveniência deletéria da leitura em que o filho mergulhava beatamente, berrou-lhe:
     - Que leituras são essas, seu palerma?
     Com o coração aos saltos do peito, determinado a escudar-lhe o prazer temerário de enraivecer o pai, Adriano gaguejou:
     - É que eu... pois bem... eu... sou monárquico.
     - Com que então monárquico, seu maricas. Eu já te dou a monarquia...
     E, agarrando Adriano por uma orelha, Negrão puxou-a até onde julgava poder fazê-lo espirrar a abjuração do nefando ideal. Mas só conseguiu arrancar lágrimas.
     A partir desse dia Adriano ficou mais monárquico do que nunca e embezerrou num polido silêncio. Aquele safado não havia de apanhá-lo fosse no que fosse.
 
Natália Correia, in "A Ilha de Circe"

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