Longe do olhar dos outros

     Tempo branco, tempo de nenhuma paixão.
     Desce ao âmago desta cela. Debruça-te para o interior do meu vazio.
     Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo - porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite. Pressente-se a morte.
     Mas no fundo de mim carregas ao ombro uma chapa de aço, em forma de sol apagado. O teu corpo fundiu no silêncio do meu.
     Dormimos na espessura da poeira, e nela suspendemos o tempo. Abandonamos a alma. Esquecêmo-nos.
     Nada sentimos, nenhum acto se realiza. Nenhuma alegria ou tristeza. Apenas matéria, matéria deixada à voragem dos escombros e da ferrugem.
     Agora podemos tocar, enlear, comprimir ou distender os corpos. Construir formas com eles e deixá-los, assim, numa melancólica eternidade.
     Longe do olhar dos outros, respiramos ao mesmo tempo - como uma só engrenagem, única e bela. Resquício de memória que se apaga lentamente, sem que ninguém dê por isso.
 
Al Berto, in "O Anjo Mudo"

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