Enganar o destino

O homem levantou-se à mesma hora de todos os dias.
Chinelando, arrastou-se até à cozinha onde preparou o habitual café da manhã.
Quando se preparava para o tomar, apeteceu-lhe afinal um cacau quente, e abandonou a chávena cheia sobre a bancada.
Dirigiu-se à despensa, de onde tirou a lata do cacau em pó, e surpreendeu-se com a presença de um envelope, fechado, mesmo atrás da lata.
De forma mecânica retira-o e pousa-o junto da esquecida chávena de café.
Depois de preparar o cacau quente enceta então a tarefa de abrir o envelope.
Provavelmente alguma conta esquecida, mas estranha a ausência de remetente.
Tem, contudo, o seu nome bem legível, assim como a morada.
Está escrito à mão, com uma letra cursiva irrepreensível, daquelas que já não se fazem.
Não fosse saber ser impossível, diria que o sobrescrito estaria ali há pelo menos dez anos; muito tempo, portanto, antes da sua mudança para o pequeno apartamento.
Lá dentro, um pequeno papel pautado dizia com a mesma letra: "O homem preparava o seu café da manhã quando lhe apeteceu, afinal, um cacau quente."
Estupefacto, não conseguiu evitar um sobressalto nas sobrancelhas, logo seguido de um arrepio pelo corpo.
O papel caiu ao chão e certo de que, depois do banho, estaria em vantagem para deslindar aquele estranho episódio, pôs-se a caminho da casa de banho.
Fez por não se esgotar à procura de uma justificação para o sucedido e, por isso, encheu a banheira de água ao invés de tomar o duche habitual.
Deitou a cabeça na borda, sobre uma toalha enrolada, e ali esteve por largos minutos, de cabeça vazia.
Por fim, deitou a mão à toalha que tinha sob a cabeça, para se enxugar, enquanto saía para o tapete.
Por de entre as dobras da toalha desliza novo sobrescrito, que aterra sobre os seus pés ainda molhados.
Muito lentamente, tomado de susto, baixa-se para o apanhar; nesse percurso, convence-se de que só pode ser o mesmo envelope da despensa, mas é obrigado a abandonar a ideia quando constata, no regresso à posição erecta, que este envelope está, ainda, fechado.
Por fora, a mesma letra remete para os mesmos nome e morada.
Com o coração em agonia, abre violentamente a carta e lê por entre o enevoado do vapor: "Nessa manhã, o homem tomaria um banho de imersão, e não um duche, como habitualmente fazia."
O homem é superado pela inquietação e corre para o quarto, quase para se certificar de que o seu corpo ainda está deitado na cama e de que tudo aquilo é um sonho mal explicado.
Para seu desgosto, a cama está vazia, o que ainda o desassossega mais.
Veste-se muito à pressa, numa ânsia de abandonar rapidamente o apartamento.
A sua tese, agora, é a de que tem andado a trabalhar demais no escritório, e isso está a provocar-lhe alucinações de stress ou coisa que o valha.
Na urgência de falar com o chefe, e de lhe pedir férias para hoje mesmo, mete a gravata no bolso, para só a colocar mais tarde, à entrada do escritório.
Na devolução da mão ao exterior do bolso, vem-lhe apensa nova carta, que lhe traz imediatamente um imenso suor à testa e ao colarinho, inutilizando uma camisa lavada.
Em tremores incontroláveis, o homem opta por abrir logo ali o envelope, convicto, porém, de que mais uma tirada adivinhatória o espera.
Não se enganou. Desta vez, rezava: "O homem pôs então a gravata no bolso, na expectativa de a colocar mais tarde, a caminho do trabalho."
Corre então para o exterior do apartamento e dirige-se às escadas.
E então, sobressaltado, pára. Não era costume ir pelas escadas.
Apanhava sempre o elevador.
Pensou então que, se fizesse algo que não era costume seu, provavelmente seria brindado com novo envelope, e desta vez decidiu tomar a dianteira do destino e antecipar os seus próprios movimentos.
Lentamente, recua os três degraus que já havia descido e volta-se para a porta do elevador. Ao carregar no botão, vê-o; lá está ele, o envelope fechadinho, entalado na chapa metálica dos botões de chamada do elevador, mesmo sob o seu nariz.
Desta vez, sorri; mostra mesmo os dentes, num gesto antecipado de vitória.
Confiante, abre o sobrescrito e pôde ler: "Ao sair de casa, o homem tomou as escadas, em vez do habitual elevador."
Riu. Riu alto, numa gargalhada desdenhosa.
Enquanto esperava a chegada do elevador, leu várias vezes aquelas duas linhas, num gesto de chacota, como que ridiculariza o adversário.
Sentia que tinha driblado o autor daquelas cartas, fosse ele quem fosse.
Estava confiante, como quem sabe que enganou o destino.
A luz de chegada acendeu-se e o homem, relendo vezes sem fim a carta derrotada, abre a porta e entra, vitorioso.
O seu grito fez-se soar por todo o poço.
O elevador estava, avariado, no rés-do-chão.

Susana Moura-Carvalho, in "O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder"

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