Meditações sobre Cegonhas

Considerava-me razoavelmente preparada para os desafios da maternidade, consequência de ser a mais velha de uma extensa geração de primos e de primas.
Mudar fraldas, pôr bebés a arrotar, cantarolar o cancioneiro infantil, fazer papas Cerelac, negociar birras, não apresentavam grandes mistérios para mim.
E assim aconteceu.
Os primeiros anos correram sem sobressaltos, a desembaraçar-me nas grandes tarefas maternas, a improvisar nos primeiros desassossegos.
Entrámos na idade dos porquês.
À cautela, a precaver o futuro, tinha observado cuidadosamente as perguntas dos petizes e as estratégias dos pais.
Tinha rido deliciada com as aflições de uns e de outros.
Estava preparada, portanto.
Rapidamente percebi que explicar a origem dos bebés seria o menor dos meus problemas, e nem sequer tive de me socorrer do velhinho expediente da cegonha.
Nas primeiras inquirições sobre o assunto, coloquei o meu ar professoral, e, entre conceitos de biologia e histórias de príncipes e de princesas, a coisa deu-se.
Fui premiada com um espontâneo e desconcertante "Que nojo!!!", e com uma providencial mudança de assunto. Tinha-me safado! Por ora...
As primeiras gotas de suor que me escorreram pela testa surgiram com as birras por um brinquedo novo. À tradicional resposta de "não tenho dinheiro", a solução rápida e despachada: "vai ao multibanco que ele dá-te as notas!"
E a explicação intrincada sobre noções básicas de economia impôs-se. Mas, se o banco é nosso, como dizem na televisão, é só ir lá dentro e pedir as notas, argumentava ela.
Pois, mas os bancos ficam com o nosso dinheiro para o aplicarem em nosso benefício, porque assim ganha juros, dizia eu. (Eu! A quem ensinaram sempre que não se deve mentir às crianças...)
E o debate académico sobre o funcionamento do nosso sistema fiscal prosseguia, terminando, não raras vezes, com a compra do almejado brinquedo...
A História de um país deve ser contada às gerações vindouras, por razões de cultura geral, mas sobretudo para que os erros do passado não se repitam.
Segura desta minha convicção, abracei a hercúlea tarefa de explicar a Ditadura e a Revolução. Quando dei por mim, dissertava sobre histórias de ogres e de fadas, polarizando a nossa História recente, num relato que se traduziu em noites mal dormidas, com pesadelos - ela - e insónias - eu.
Entre prisões políticas e cravos em espingardas, as minuciosas descrições sobre a cadeira do Salazar (teria espaldar? estava partida? e porque se lembrou ele de subir à cadeira?) e a confirmação, quase sob juramento, uma e outra vez, de que está efectivamente morto, a grande questão colocou-se: As pessoas não podiam falar porque o Salazar lhes punha fita-cola na boca?
Ainda imbuída deste espírito, tenho levado a minha filha comigo a todos os actos eleitorais, momentos que aproveito para uma introdução aos princípios elementares da participação cidadã em democracia.
Na primeira vez, à saída da urna de voto, correu entusiasmada para a avó, aos gritos, apontando para as listas afixadas no recinto: "A mãe votou naquele!!!"
E como explicar que um acto com consequências tão importantes na nossa vida tem de permanecer secreto?
Nos esclarecimentos sobre o "Que é isso do Governo?", também não fui feliz.
Declarou-se, peremptória, contra toda e qualquer instância que cometa o atrevimento de lhe dar orientações, gerais ou específicas, porque "nela ninguém manda!"
E no final da cátedra, a tese.
Apresentada em toda a sua simplicidade axiomática, como só as crianças o conseguem fazer: "votar é como as rifas."

Vanda Fidalgo, in O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder

Comentários