Até à próxima

QUANDO, HÁ MUITOS ANOS, comecei a escrever para os jornais, um velho e sábio jornalista disse-me: ESCREVE SEMPRE A TUA PRÓXIMA CRÓNICA COMO SE FOSSE A ÚLTIMA.
   Na altura fiquei um pouco perplexo. Com o tempo compreendi o aviso: escreve sempre a tua próxima crónica como se fosse a última, porque
   - o amanhã é precário;
   - a tua mulher pode usar o rolo da máquina de escrever para estender a massa;
   - o teu maior inimigo pode não te dar tempo a que faças outra;
   - pode sair um decreto que estipule: «Quem não escrever a sua próxima crónica como se fosse a última não tem direito a remuneração porque estão todos obrigados a produzir o esforço máximo»;
   - podem roubar-te a esferográfica;
   - pode dar-te um vazio na cabeça;
   - pode a amnésia ocorrer na citada;
   - pode o invejoso revelar-se: «Ele escreveu realmente esta crónica como se fosse a última. Não é possível escreverem-se mais asneiras»;
   - pode a tua mulher pôr outra vez o rolo na máquina de escrever, depois de estender a massa, mas o teu sobrinho mais imprevisível pode ir pô-la no prego no minuto imediato;
   - podes deixar a crónica seguinte num táxi, trazendo em seu lugar o dossiê das contas da lavandaria que o freguês anterior lá tenha deixado esquecido;
   - pode sair outro decreto especial: «Quem não escrever a sua próxima crónica como se fosse a última está sujeito ao imposto ora criado num impresso próprio para o efeito, intitulado "Imposto único para os que não escrevem a sua próxima crónica como se fosse a última"»;
   - podes ter a sorte de haver alguém que traduza a crónica em francês ao Jack Lang, e que ele diga, também em francês: «Ele escreveu a sua próxima crónica como se fosse a última»;
   - pode ser que alguém reproduza esta frase do Jack Lang, a propósito não se sabe de quê, mas agora em inglês, sendo ouvida por acaso por Sir John Gielgud, que estava lá;
   - pode um amigo, que não te fala há trinta anos, mandar-te um postal com a frase «Escreveste a tua crónica como se fosse a última. Adeus»;
   - pode ela dizer: «Li a crónica. Estás perdoado»;
   - pode o chefe de redacção decidir: «Merece um bónus de quinhentos paus»;
   - E terás a satisfação do dever cumprido: «Uf! escrevi a minha próxima crónica como se fosse a última! Como eu estava precisado de dinheiro!»
   Assim é.
   E até à próxima crónica, se esta não for a última."
 
Dinis Machado, in "A liberdade do drible"
  

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