As camadas por debaixo da casca

   "(...) A recordação gosta do jogo das escondidas das crianças. Entrincheira-se. Tende para as belas palavras e gosta do adorno, muitas vezes sem fazer esforço. Contradiz a memória, que se dá ares pedantes e embirra em ter razão.
   Quando é importunada com perguntas, a recordação assemelha-se a uma cebola, que quer ser descascada, para que possa vir à luz aquilo que é legível, letra a letra: raramente de forma unívoca, muitas vezes como escrita em espelho, ou de qualquer outro modo cifrado.
   Por debaixo da primeira, ainda seca e estaladiça casca, encontra-se a camada seguinte, a qual, mal retirada, liberta, húmida, uma terceira, sob a qual a quarta e a quinta esperam e sussurram. E cada uma das seguintes transpira palavras evitadas por demasiado tempo, sinais tortuosos também, como se um vendedor de segredos tivesse, desde cedo, quando a cebola ainda germinava, querido cifrar-se.
   Logo desperta a ambição: estes gatafunhos têm de ser decifrados, aquele código quebrado. Logo é desmentido aquilo que insiste em ser verdade, porque amiúde é a mentira ou a sua irmã mais nova, a batota, que compõe a parte mais durável da recordação; escrita no papel, soa credível e vangloria-se com pormenores que se impõem com rigor fotográfico: o telhado de cartão alcatroado, reluzente sob o calor de Julho, do barracão no pátio das traseiras da nossa casa arrendada, cheirava a rebuçado de malte quando não havia vento...
   A gola lavável da minha professora primária, a senhora Spollenhauer, era de celulóide e apertava tanto que o pescoço dela fazia pregas.
   Os laços em hélice das meninas, ao domingo no pontão de Zoppot, quando a banda da Polícia de Segurança tocava modas alegres...
   O meu primeiro boleto comestível...
   Quando nós, alunos, não tínhamos aulas por causa do calor...
   Quando as minhas amígdalas lá voltavam outra vez a ficar inflamadas...
   Quando eu engolia perguntas...
   A cebola tem muitas camadas. Existem em maioria. Mal é descascada, renova-se. Cortada, provoca lágrimas. Só ao descascá-la fala verdade. O que aconteceu antes e depois do fim da minha infância, bate à porta com factos e decorreu pior do que o desejado, quer ser contado às vezes assim, outras de maneira diferente e desencaminha para histórias de mentira. (...)"

Günter Grass (16/10/1927 - 13/04/2015), in "Descascando a cebola"

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