Os antinatal

   "Do que eu mais gosto no Natal não é dos presentes, nem da celebração da paz e da alegria. Do que eu mais gosto é das pessoas que se indignam com os presentes e com a celebração da paz e da alegria. Gente indignada é sempre engraçado. Felizmente, não são assim tão poucos.
   São os que protestam contra o Natal por ser uma época em que parece que há a obrigação de estar feliz. «Uma altura do ano com marcação para a alegria», dizem. Não percebo o escândalo, eu até acho normal. Também há uma altura do ano para se pagarem os impostos, para se fazerem férias na praia, para marcar uma consulta de revisão no dentista (normalmente, logo depois do Natal). É a ordem natural das coisas: impostos depois dos gastos com o Natal e com os dentes, praia depois dos impostos, com os dentes arranjados e sem barriga (com falta de dinheiro para comer bem, depois do IRS).
   Eu, que sou muito organizado, gosto disso. E estranho quem se amofina com o agendamento no Natal. Não é, de certeza, pelo acto de programar, porque, tal como há quem marque esta altura para estar contente, eles marcam para estarem amuados.
   Protestam, por exemplo, contra a caridade bissexta, que só aparece nesta altura. Durante o resto do ano, não passa nada; chegado o Natal, é uma onda gigante de solidariedade. Uma espécie de tsunami de auxílio. Perguntam: «Porque não dar no resto do ano?» Eu diria que é por haver, na época natalícia, uma predisposição para ajudar. Há xaropadas na televisão a lembrar que existem desfavorecidos. Há sentimento de culpa. Há NIBs de contas para onde podemos transferir dinheiro sem sair de casa. Há mais gente a pedir, é natural que haja mais gente a dar. É mais fácil. Mas estes detractores do advento não gostam da facilidade. É batota. »O quê, lá porque há um peditório vou dar? Não, se ainda fosse levar uma mochila com 120 quilos de enlatados até uma aldeia na Nigéria, eu alinhava. Agora, se é para facilidades, não contem comigo!» São fanfarrões da caridade. Ajudar, para eles, deve ser um desporto radical. Uma prova de esforço. Menos que um triatlo da filantropia é igual a nada. Tem de ser difícil. Só que (podem perguntar a qualquer mendigo) o mais difícil não é abster-se de dar, é não receber.
   Mas o que irrita mesmo esta malta é o consumismo. Ui, o consumismo! O que se exasperam com  o consumismo do Natal. Parece que no Natal se gasta demais. E é verdade. Mas, como é com os outros, é menos mau. Despesa supérflua existe sempre. Desperdiça-se dinheiro durante o ano todo. Mas com o próprio. No Natal é para oferecer, por isso é um gasto que se justifica. O esbanjamento, quando é altruísta, ao menos é bonito. Quando é egoísta é só estúpido.
   Ao contrário do que se pensa quem não gosta do Natal, a alternativa a «ser bonzinho só no Natal» não é «ser bonzinho o ano todo». É «ser mauzinho o ano todo». Felizmente, já acabou o Natal e podemos parar de fingir que gostamos dessas pessoas."

 José Diogo Quintela, in "Falar é fácil"

Comentários