O meu Pai Natal

   "O Pai Natal é um velho de grandes barbas brancas, que vem num trenó puxado por muitas renas e deita os presentes pelas chaminés abaixo.
   Mesmo nos prédios de muitos andares que não têm chaminé.
   Pronto, isto é o que corre por aí.
   É esta história que faz as delícias de miúdos e graúdos e em que, evidentemente, nem miúdos nem graúdos acreditam - mas fazem muito bem de conta. Porque é esse o papel que se lhes pede que representem nesta altura.
   Devo dizer no entanto que, na minha infância, o Pai Natal nunca foi pessoa das minhas relações.
   Para mim, o Natal era a altura do ano em que vinham os chatos dos tios muito velhos da província, que só queriam ver as revistas do Parque Mayer e engatar as coristas.
   Depois davam-me prendas, que eu sempre pensei que eram a (justíssima) paga por ter passado aquele tempo caladinha no meu canto, sem chatear os adult(er)os.
   Com a chegada dos meus filhos, fui, digamos, obrigada a fazer a revisão da matéria dada...
   Mas eles, coitados, também chegaram em má altura, andava toda a gente muito revolucionariamente excitada, e o Pai Natal não entrava na excitação.
   Era o tempo dos «operários do Natal», estão a ver - Quem faz o Natal são os operários - e lá vinha o pasteleiro, e mais o carteiro e mais o lenhador; quem abate o pinheiro de Natal é alguém que trabalha e ganha mal - e cada um deles era um irmão nosso que trabalha no Natal - e a malta muito deprimida, a pensar na trabalheira que estava a dar a tantos irmãos nossos, coitadinhos, a esfalfarem-se pelo nosso bem e ainda por cima mal pagos.
   O Pai Natal, ou não entrava na história, ou era o capataz da fábrica e, com esse, pouca conversa, camaradas!
   Quando comecei a achar uma certa graça ao senhor - e, confesso, a não me ralar com a trabalheira que estava a dar a todos os irmãos nossos - já tinha netos.
   Estes, sim, podem gozar à vontade o Pai Natal, apertar-lhe a mão sem remorsos, fazer-lhe estranhas encomendas (espero que o Pai Natal da minha zona saiba, ao ler a carta do meu neto Pedro, que a PSP que ele quer não implica encher a nossa casa de polícias, mas sim de uma PlayStation Portable...), tirar retratos ao colo dele, pô-lo inclusivamente deitado nas palhinhas num dos muitos presépios cá de casa.
   Agora «um amigo nosso» não «vale mais que um Pai Natal»; agora o Pai Natal é um amigo nosso.
   E, por acaso, o meu Pai Natal é mesmo um amigo meu.
   Subi imenso na consideração da minha neta mais nova quando uma tarde, íamos nós a entrar num café, lhe disse: 
   - Conheço o Pai Natal. É aquele senhor que está ali. 
   Porque o meu Pai Natal existe.
   Chama-se Severino, andou por Angola, fez rádio, teatro amador, publicidade, etc. Reformou-se há anos, e desde então vai escrevendo umas coisas, faz uns anúncios na televisão e, quando chega dezembro, veste a fatiota vermelha, põe as barbas brancas e anda por um dos centros comerciais mais importantes de Lisboa a deixar-se fotografar com as crianças ao colo e a ouvir histórias.
   E tem histórias fabulosas.
   Desde polícias a quererem fotografar-se ao seu lado, até uma criança muito indignada por ele não trazer no bolso as fotografias das renas:
   - Parece impossível! Elas a estafarem-se a puxar por ti e tu não lhes ligas nenhuma?!
   Passando por uma espanhola-em-toda-a-aceção-da-palavra a pedir-lhe:
   - Um homem, por favor, um homem! que eu estou verdadeiramente encalhada, caramba! e acho que isto só lá vai com a ajuda do Pai Natal.
   E o meu Pai Natal é tão bom, mas tão bom mesmo que, passado um ano, a espanhola estava casada, e olé!
   Quer dizer, comecei tarde a acreditar no Pai Natal - mas valeu a pena."

Alice Vieira, in "O que se leva desta vida"
  

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