Mr. Apple Pie

   "Era um dia quente de Junho de 1990.
   Pelo meio-dia, um casal de turistas ingleses aproximou-se da ementa colocada à porta do meu restaurante. Depois de ler, um deles voltou-se para dentro e perguntou-me »Não tem tarte de maçã? Com uma ementa tão boa sem a sobremesa que mais aprecio... Não se pode considerar uma excelente ementa.»
   Era um homem bastante idoso, com um sorriso simpático e um tom de voz suave que de imediato mereceu a minha simpatia. Não consegui fugir ao lugar comum e respondi-lhe «Ninguém é perfeito...» Foram-se embora, mas meia hora depois voltaram para almoçar com mais um casal de turistas, ingleses como eles, que estavam hospedados no mesmo hotel de Cascais.
   Ao longo do almoço, sempre espirituoso, ele foi brincando, deliciado com o que comia, mas sempre fingindo um ar triste pela falta da tarte de maçã. E todos os dias voltavam para almoçar com novos amigos, a quem éramos apresentados como gente simpática, com boa comida e apenas com um lamentável defeito: não tínhamos tarte de maçã.
   Ao terceiro dia já o tínhamos carinhosamente alcunhado de Mr. Apple Pie. Ele achou graça e riu. No penúltimo dia da sua semana de férias fiz-lhe uma surpresa. Encomendei uma deliciosa tarte de maçã numa conceituada Pastelaria do Estoril e, quando ele se preparava para lamentar uma vez mais a falta da sua sobremesa preferida, coloco-lhe à frente a tarte inteira, informando-o de que era uma oferta minha, esperando apenas que ela fosse tão saborosa como aquelas que ele estava habituado a comer.
   Mrs. Apple Pie riu, comovida de satisfação. O casal que os acompanhava desta vez ficou calado, sorrindo apenas. Mr. Apple Pie abriu a boca de espanto: «Já não acreditava que isto pudesse acontecer!» Recompôs-se e, fazendo um ar sério, perguntou: «Não tenho direito a natas batidas?» Fui buscar uma taça razoavelmente grande e cheia. Disse-lhe que se servisse à vontade.
   Foi ele quem dividiu a tarte em quatro e todos comeram com denotado prazer: Agora sim. Tínhamos conseguido. A nossa classificação tinha chegado ao máximo e, para sermos completos deveríamos incluir tal iguaria na nossa ementa. Rimos, sentimos prazer pelo feito provocado pela surpresa.
   No último dia, ao almoço, Mrs. Apple Pie veio sozinha. O marido tinha ficado no hotel. Não se sentia muito bem. O coração, do qual sofria, de vez em quando dava-lhe maus sinais. Ao fim do dia, regressavam a Londres.
   No dia seguinte, ao jantar, outros ingleses que já tinham vindo com eles almoçar mostraram-me uma foto de uma senhora na praia. Imediatamente a reconheci. «Mrs. Apple Pie!», disse eu. «Exactamente», responderam. Ela acaba de adiar a sua partida devido à morte do marido com um ataque cardíaco. «Está tudo a ser tratado para ser feita a transladação do corpo o mais rapidamente possível.»
   Senti um «soco no estômago». As lágrimas vieram-me aos olhos. Tinha acabado de perder um amigo a quem servi a sua última refeição, completada com a iguaria que ele mais apreciava.
   Com frequência o recordo. Sobretudo quando vejo uma tarte de maçã, sinto que ele está por perto."

Delmar Silva (Cascais), in "Histórias Devidas"   

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