A educação

   "A educação é o tema do momento. Avaliações, vandalismos, incentivos à leitura, todos têm seguido as propostas e as polémicas. Eu não confundo crónicas com artigos de opinião, pelo que não escreverei aqui nada sobre este assunto. Até porque não tenho opinião: não sou professor, nem aluno, nem pai. Sei pelos outros. Sei de ouvir dizer.
   No entanto, já fui aluno, e esta discussão suscitou em mim várias memórias. E uma noção, assumidamente pessoal e intransmissível, de que o essencial da minha educação não ocorreu na escola. Ou melhor: não esteve ligado às matérias leccionadas. Devo muito mais à família (em termos de valores e carácter) e muitíssimo mais à literatura e ao cinema (em termos de estática e mundividência) do que à escola. Na escola adquiri as competências próprias de cada grau de ensino e convivi com pessoas da minha idade. Aliás, isso foi o aspecto mais importante: a socialização. O meu modo de me relacionar com os outros deriva em grande medida da socialização que vivi na escola. Mas não nas aulas, ou melhor, não por causa dos específicos programas estudados.
   Como disse, não tenho opinião sobre a avaliação de alunos e professores, mas sei, porque me lembro, como se esboça uma hierarquia de inteligência e amabilidade. Havia os bons alunos, naturalmente detestados, excepto um que era o bom aluno rebelde (e que ia mudando todos os anos). Havia os realmente maus alunos, aos quais atribuíamos estupidez congénita ou problemas em casa. Havia os miúdos exuberantes mas algo tristes. Havia os professores fascistóides e amigos de adjectivos. Havia os professores pedagogos e amavelmente chatos. Havia os professores entusiasmantes e os inconvenientes. Toda a socialização docente e discente se fazia encostada a essa escala duvidosa de conflito e empatia. Depois, havia o lado lúdico e competitivo com os colegas, os grupos tribais, as afinidades, o carisma, o domínio que sobre os outros exerciam a brutalidade ou a beleza física, as mistificações sexuais, as humilhações de classe, os jogos de futebol. Se eu pudesse reconstituir minuciosamente as relações de soberania e sujeição dos meus anos de liceu, tinha traçado um mapa bastante preciso dos meus sucessos e fracassos sociais, o modo como vejo a colmeia da sociedade, que não é muito diferente num pátio de liceu ou no mundo dos adultos.
   Repito: sobre políticas educativas sei pouco. Sei aquilo de que me lembro. Sei que os TPC que então detestava me parecem agora uma maneira eficaz de prolongar a aprendizagem em casa. Sei que a autoridade e o autoritarismo são tão diferentes como a noite e o dia. Sei que a tolerância com a pequena indisciplina convida à grande indisciplina. Sei que a dificuldade é o núcleo indispensável de qualquer aprendizagem. Sei que a sexualidade ensinada a grupos é apenas galhofa. Sei que os miúdos são mais sensíveis a reis e generais que a arrobas e alqueires. Sei que ensinar o Amor de Perdição é matar o gosto por Camilo. Sei que toda a gente foge das matérias contemporâneas. Sei que o amor pela língua e pelo conhecimento não se consegue seguindo projectos burocráticos desonestos quanto à natureza humana e plasmados em português de caca. Sei isto, porque me lembro disto. Mas nmão tenho opinião."

Pedro Mexia, in "Nada de melancolia"      

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