Rir com dentes alheios

No final dos anos oitenta, a minha amiga Francelina, viúva há muitos anos, já tinha passado dos setenta, quando uma sua vizinha, cobiçando a sua bela dentadura, que lhe tinha custado um dinheirão, lha pediu emprestada para ir a um casamento mais composta porque, com o passar dos anos, os seus velhos dentes já tinham todos desaparecido e deixado um razoável espaço vazio entre os dois maxilares.
Francelina achou aquele pedido um tanto ou quanto fora do vulgar. Emprestar os dentes à sua vizinha, habitual companheira das notícias mais importantes do bairro e das tricas da última radionovela?! Ainda se fosse o tradicional raminho de salsa, ou até mesmo uma peça de vestuário, vá que não vá... Não lhe deu logo a resposta. Que tinha que pensar melhor. Que, como ainda faltavam duas semanas para o casório, logo lhe daria a resposta.
A outra insistiu nos dias seguintes, afirmando que sem a dentadura não iria ao casamento da sobrinha, que tanto empenho tinha mostrado na sua presença. Não queria fazer-lhe a desfeita de não comparecer na cerimónia matrimonial, e ainda por cima iria estar presente um pretendente à sua mão. Queria naturalmente fazer boa figura e aspirar ainda um final de vida bem mais confortável do que aquele em que a deixara o seu Manel há quinze anos. 
Para atingir esse objectivo, a vizinha estava disposta a tudo fazer, mesmo a sujeitar-se a pedir o «teclado» emprestado à Francelina. O pretendente era igualmente viúvo e o dono de uma casa onde nada faltava,
pelo que não seria a falta de um belo sorriso "pepsodent" que iria impedir a concretização do seu sonho.
Faltavam dois dias para o casório da sobrinha, quando finalmente Francelina, não resistindo mais à pressão da vizinha, acedeu a emprestar-lhe a dentadura apenas pelo tempo que durasse a cerimónia e o copo de água.
A vizinha tranquilizou-a, reafirmando pela vigésima vez que iria ter o máximo cuidado com o «teclado» da Francelina e que o devolveria no regresso a casa depois de lavado com água e lixívia.
O dia do casamento passou sem que Francelina recuperasse a sua preciosa dentadura. Nessa noite não pôde dar o habitual olhar aos seus belos dentes, brilhando dentro do copo de água na mesa-de-cabeceira, antes de desligar a luz e de se deixar adormecer.
No dia seguinte, correu para casa da vizinha mal o sol nasceu, mas da vizinha nem rasto. Não lhe pôs o olho em cima nas duas semanas seguintes, tendo emagrecido meia dúzia de quilos por lhe faltarem os seus queridos dentes. Maldisse dezenas de vezes a hora em que cedeu aos pedidos constantes daquela falsa amiga.
Mais um mês depois de tão triste acontecimento, numa bonita manhã de Primavera, quando já regressava do mercado municipal, onde fora comprar uns charrinhos para limar, deu de caras com a maldita vizinha que não lhe tinha devolvido a dentadura.
Cruzou-se com ela e, para seu espanto, viu-a rir-se para a sua cara, com os seus próprios dentes!.. Francelina não foi capaz de pronunciar uma única palavra, perante a desfaçatez daquela criatura, de quem outrora fora amiga.
Daí para a frente, segundo me disse, depois de ter comprado uma nova dentadura, nem o tradicional raminho de salsa dispensou às vizinhas, por mais chegadas que lhe fossem... Pudera!

Cristina Campos in "Histórias Devidas"

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