As gajas são lixadas

O meu amigo Hélder levou ontem um medíocre da nossa professora e, quando chegou ao recreio, pôs-me uma mão no ombro e disse-me com cara de quem sabe muito bem do que é que está a falar:
- Sabes o que eu te digo, pá? As gajas são lixadas!
Fiquei-me com aquela. Se o Hélder dizia é porque devia ser verdade. Eu é que andava distraído e nunca tinha pensado a fundo nesses assuntos relacionados com gajas. Mas pensando bem, pensando bem, o Hélder tinha toda a razão. Verdade, verdadinha: "As gajas são lixadas". 
Bastava lembrar-me da Armandinha que, em vez de me dar cromos das pastilhas elásticas, preferia deitá-los para o caixote do lixo só para me irritar. E da Célia, a quem pedi namoro e se desatou a rir. E a Joana que todos os dias me dizia que eu tinha cara de sapo engasgado.
O Hélder tinha mesmo razão. Quando fui para casa, ia a repetir cá para comigo: "As gajas são lixadas! As gajas são mesmo lixadas!" Olhava para cada mulher que passava por mim na rua e pensava: "Tu também és uma gaja lixada!"
Cheguei a casa a repetir baixinho - As gajas são... - O que é que vens a dizer, filho? - perguntou - me ela. Eu não disse nada. Fiquei corado desde o calcanhar até ao alto da cabeça. E ela a querer saber o que é que eu tinha, e eu que não tinha nada. Nadinha.
Ai não que não tinha! Fui logo a correr para o meu quarto e pus-me a pensar muito depressa que é a única maneira de pensar quando estamos aflitinhos.
Como é que eu ia descalçar aquela bota? A minha avó não era lixada. E a minha mãe também não. Nem a minha madrinha. Muito menos a Rita das trancinhas do 3.º esquerdo que não era mesmo nada lixada.
Espremi muito o pensamento e não foi nada fácil arrumar as coisas tão ao contrário que pareciam ser umas das outras.
Mas não havia dúvidas. O Hélder tinha toda a razão. As gajas são mesmo lixadas. O problema é que, entre as mulheres que eu conhecia, não tinha a sorte de conhecer nenhuma gaja.

José Fanha in "Diário inventado de um menino já crescido"

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