A PURA DA POESIA, por Alexandre Dale


2. A LÍNGUA É UM PAÍS

O segundo volume em cena, outra colectânea, desta feita de um poeta brasileiro, uma poesia tão completa quanto o título o permite (dado que toda vive na e da incompletude), tem o condão de nos colocar perante o monstro da fonética contra a ortografia, também conhecido como Acordo Ortográfico. Explico: com uma frequência inquietante, poema a poema, deparamo-nos com uma incómoda incapacidade de traduzir o que estamos a ler, apesar de a língua utilizada ser essa que é nossa mãe. Será que é mesmo português? Será que o acordo do nosso desacordo desataria os nós da nossa incompreensão? Duvidoso: a língua, mais que um código, é uma tradução do pensamento, e o pensamento organiza-se em função do conhecimento, e o conhecimento maior é o que se vive. Ora o que se vive no Brasil não é o mesmo que se vive em Portugal, mesmo que seja o mesmo amor, a mesma dor, o mesmo saber. A nós a estrela polar, a eles o Cruzeiro do Sul; a nós a Grécia antiga, a eles os mistérios da Amazónia. E nem sequer todo o Brasil é igual, do mesmo modo que o Portugal do norte e do sul não são o mesmo, praias não são montanhas, amêndoas não são castanhas. Tal como acontece a quem lê numa língua que não é a sua, alguma coisa se perderá na “tradução”, mas o poema viverá, seja como for. Saudar o poeta é redundância, perceber quem somos é tudo. Por mim, emigrava por uns tempos, de cada vez que leio um poema que me obriga a pensar ou a sentir para lá de mim. Mas isso sou eu. E se ser eu não é pauta nem lei, todavia um qualquer desafio que na literatura se faça, para lá de não ser mortal, contem sempre um qualquer elemento de riqueza – de enriquecimento. O que, em tempo de vacas magras, não será coisa de somenos.

Manoel de Barros, “Poesia completa”, Caminho, 2010

Comentários