Jorge lia de pé

     Jorge tinha o costume de ler de pé e andar inconscientemente pela casa como quem atende um telefone sem fios e dá voltas à mesa da sala. Não era nada de grave, na verdade. O género preferido de Jorge eram os contos e eles rapidamente acabavam, o que era bom, porque Jorge já contava uns anos nas pernas e não devia aguentar muito mais. Quando acabava o conto, acabava-se a caminhada pela casa.
     O que surpreendeu Babel, o seu gato, naquele dia em específico foi o livro mais grosso que o dono escolheu para ler, enquanto resmungava para dentro, na voz rouca de tão pouco uso, por não haver mais livros de contos para ler naquela casa. Jorge começou aquele romance com desinteresse, dada a sua desconfiança em relação a obras maiores. No entanto, à medida que se embrenhava na intriga, aparentemente de qualidade, levantou-se lentamente do cadeirão onde iniciava as suas leituras. Babel bocejou: lá ia ele começar as suas andanças. Preferiu então enroscar-se no parapeito para apanhar sol. Como dormia, não pôde assistir ao fenómeno divergente da rotina, pois Jorge, depois de dar umas voltas na cozinha e casa de banho, sem ter terminado ainda a obra, deixou que os pés o conduzissem para a porta de saída que estava só encostada. O pé mais atrevido abriu-a e o mais receoso siguiu-o escadas a baixo até que pararam hesitantes na calçada. O livro devia ser empolgante porque Jorge deu um pequeno saltinho e começou a subir depressa a rua, que até era visivelmente inclinada.
     As pessoas por quem passava ficavam boquiabertas vendo um  velhote a andar depressa pela rua, sem apoio de qualquer bengala, ainda por cima sem olhar para onde ia, agarrado a um livro. Surpreendiam-se ainda mais perante a sua confiança ao atravessar as estradas, ao não bater em nenhum poste e ao não tropeçar nas pedras soltas.
     A leitura foi bruscamente interrompida por um puxão no casaco. "Desculpe", disse um rapazinho que o seguia assustado, pois já o tinha chamado três vezes, "deixou cair esta carta". Jorge agradeceu sem olhar para o menino, antes pegando no sobrescrito esquecido que devia ter estado enfiado entre as páginas daquele volume. De Paris, uma carta de amor endereçada a Jorge Luis Borges. Sorrindo para dentro, o velhote devolveu-a ao menino dizendo: "Desculpe, mas será que ma pode ler?" O menino reparou então que o velho não olhava para si, mas atravé de si. Era cego. O rapaz ficou estupefacto a olhar para o homem. Cego e a andar pela rua sozinho, a ler um livro? Devia ser maluco. Ainda deu uma olhadela ao livro antes de fugir com a carta na mão. Era qualquer coisa Quixote e estava aberto numa ilustração antiga, com moinhos.

Daniel Rodrigues, in Revista Ler nº 111

Comentários