A GATA BORRALHEIRA

A GATA BORRALHEIRA

Pensam vocês que sabem esta história?
Mas a que têm na vossa memória
É só uma versão falsificada,
Rosada, tonta e açucarada
Feita para crianças inocentes
Não terem medo, ficarem contentes.

Começou tudo naquele ponto
Em que as feias irmãs deste conto
Com seus brincos, colares e anéis
Partiram para o Baile dos Reis
Enquanto a pobre Gata Borralheira
Ficou fechada, só, na garrafeira
Cheia de ratos, ratinhos ratões,
Todos às dentadas e encontrões.
“Ai quem me acode, quem me vem salvar!”
Num clarão de Luz, toda a brilhar
A Ada Madrinha lhe apareceu
E disse: “Então, o que te aconteceu?”
Dando três murros na porta trancada
Assim se queixou logo a afilhada:
“Hoje há um baile, que dá o rei.
Já todos partiram e eu fiquei.
Quero um vestido, um coche dourado,
Jóias de ouro, um rico toucado.
Dançando com sapatos de cristal
Vou conquistar o Príncipe Real.
“Espera”, disse a Fada Madrinha
E com mágico toque de varinha
Fez a Gata Borralheira aparecer
Lá onde o baile estava a decorrer

Ah, como as irmãs se arrepelaram
Quando na pista de baile dançaram
O Príncipe e a Gata Borralheira,
Abraçados de uma tal maneira
Que o Príncipe até perdeu a fala
Diante de todos, naquela sala!
Bateu a meia noite: Ela exclamou:
“Adeus! Adeus! Adeus, que já me vou!”
Mas o Príncipe, nada conformado,
Prendeu-a pelo vestido bordado.
Ela gritou: “Ai, deixa-me partir!”
E pelos salões largou a fugir.
O vestido ficou todo rasgado.
Correndo à pressa, em roupa interior,
Um sapato perdeu no corredor.
O Príncipe saltou como um leão,
E levou o sapato ao coração.
“A rapariga a quem ele servir
É a noiva com quem me vou unir.
Hei-de correr as casas da cidade
Até descobrir a minha beldade!”
Depois, como era muito despistado,
Deixou-o num caixote, abandonado.
Então uma das manas invejosas
(Picada de borbulhas horrorosas)
Pegou no sapatinho tão coquete,
Atirou-o para dentro da retrete.
Em seu lugar, dissimuladamente,
Pôs o próprio sapato ainda quente.
As coisas estão-se a complicar…
A Gata Borralheira irá ganhar?

Quando nasceu o sol no outro dia
Às portas já o Príncipe batia.
A quem seria, ora, a quem seria
Que o famoso sapato pertencia?
Era largo e enorme o sapatão,
Parecia a bota dum capitão.
Pior ainda, cheirava a chulé
(Suado e sujo estava o pé).
Uma bicha de moças se formou,
O sapato a nenhuma se moldou.
Até que as irmãs vieram correndo,
Estendendo a primeira um pé horrendo.
“Serve-me, é meu”, gritou a megera,
“Vou casar contigo na Primavera.”
“Isso é que não vais!”. O jovem gritou
E com o susto quase desmaiou.
Mas ela guinchava, ela insistia,
De ser princesa não desistia.
“Ordeno que lhe cortem a cabeça!”
Rugiu , cheio de raiva, Sua Alteza.
E, vendo a rapariga degolada,
Exclamou: “Fica assim mais engraçada!”
Para calçar o sapato, depois
Avançou a Irmã Número Dois.
“Prova antes o fio da minha espada!”
O Príncipe, com uma espadeirada
Cortou-lhe a cabeça que rolou
Como uma bola até que parou.

A Gata Borralheira na cozinha
Fazia bolos de mel e farinha.
Ouvindo as cabeças tombar no chão
Sentiu um baque no seu coração.
Foi à porta espreitar. “Que aconteceu?”
“Não te metas!”, ele lhe respondeu.
A pobre Gata Borralheira
Pôs-se a pensar da seguinte maneira:
“Casar contigo não posso admitir
Se cortas cabeças para te divertir.”
“Quem é a porca que está na cozinha?”
Ele exclamou “Vou cortar-lhe a pinha!”
A fada surgiu num branco clarão,
Aterrou ali perto do fogão.
“Formula um desejo, minha afilhada,
Eu vou ajudar-te, não custa nada.”
A Gata Borralheira reflectiu
Com mil cuidados depois do que viu.
“Ó querida Madrinha, ó boa Fada,
Vou-lhe pedir coisa complicada.
Príncipe rico já eu conheci,
De luxos e jóias já me servi.
Agora pretendo um marido honrado
Bom e fiel, sempre a meu lado.”

A Gata Borralheira de repente
Viu-se casada com atraente
Fabricante de bela marmelada.
Como era doce, doce estar casada!
Para todo o sempre foram felizes,
Não sei se tiveram muitos petizes.

Roald Dahl, in “Histórias em verso para meninos perversos”

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