Uma manhã fria nos jardins do Luxemburgo

   "Numa fria manhã de Inverno, em finais de 1971, um rapaz de 20 anos, em idade de mobilização militar, encontra-se nos jardins do Luxemburgo para fazer uma sessão de fotografias para a capa de um LP. Um frio cortante obriga-o a apertar o blusão leve e a ajustar o cachecol de lã. O frio não poupa. O fotógrafo francês pede-lhe para deixar o olhar perder-se ao longe, como se tentasse fixar a linha do horizonte, nessa manhã enevoada e gélida. Era a primeira vez que visitava Paris e durante alguns dias alimentou o sonho de não regressar. Fez a viagem sozinho e cheio de apreensões e dúvidas. Ficar ou regressar? Alguma coisa havia de se arranjar por aquelas bandas, poiso incerto de tantos portugueses, os braçais e os outros, os exilados políticos e os imigrantes comuns, todos eles de uma forma ou de outra à espera que Portugal mudasse de rumo, de destino, de regime. Em Paris sentia-se pela primeira vez em liberdade, sem ter de olhar para os lados para poder entrar e sair de uma livraria ou de um cinema em segurança.
   Sentia-se muito só nessa manhã, dividido entre o desejo de regressar e a vontade de romper, de não voltar, de deixar tudo para trás, a começar por uma mãe viúva, possessiva e ansiosa, e a acabar num ofício de jornalista que então se iniciava num grande jornal, o Diário de Lisboa, sonho que acabara de se realizar, forçando-o a interromper uma experiência profissional como actor de teatro e a optar pelo estatuto de aluno voluntário num curso de Direito muito pouco sedutor para quem tinha o coração a bater, desde a adolescência, pelo ritmo das canções, da música intrínseca da poesia, e das intensas falas teatrais, fossem elas as vicentinas, as do teatro do absurdo ou dos textos do Nô contemporâneo saídas da pena de Yukio Mishima.
   Olho hoje para essa velha fotografia a preto e branco, retrato enigmático de um jovem revoltado mas apto para todo o serviço de combate contra a opressão e o medo que sufocava o Portugal distante, amordaçado, segundo o título de um livro de Mário Soares, e dou-a a ver a um neto de dez anos que pergunta:
   - Quem é?
   - Sou eu, o teu avô, há mais de quarenta anos, em Paris, a gravar um disco e a pensar se havia de regressar ou de ficar. Se tivesse lá ficado, hoje não estaríamos a ter esta conversa. Talvez houvesse outros netos, mas tu não exactamente, porque as coisas nunca se repetem da mesma maneira se voltamos ao princípio com vontade de as repetir.
   - E como é que tenho a certeza de que és mesmo tu e não o avô de outro miúdo da minha idade?
   - Olha para a capa do velho LP e lê o nome que lá está. É o teu apelido, o do teu pai. É o nosso nome. Há coisas que não enganam, mesmo com quase trinta quilos a menos, com cabelo comprido e bigode em vez de barba. A expressão do olhar é a mesma, a tristeza e a revolta também. Há neste velho retrato tirado em Paris a marca de uma longa história que ainda não acabou de ser contada, a história de uma vida que teve como protagonista um jovem português, nascido em Cascais, filho único de um casal feliz, que sonhou com o fim de uma ditadura que, muito modestamente, também ajudou a derrubar e com uma revolução que acabou por não se cumprir. Este é um apaixonado retrato de juventude, com Abril em fundo. É um retrato a preto e branco como as grandes ilusões traídas e como os pesadelos que a ventania nocturna às vezes interrompe.
   E isto passava-se num tempo em que, como dizia o Ruy Belo, tudo era possível era só querer."
 
José Jorge Letria, in "E tudo era possível"  

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