A minha mãe é contrabandista (Vila Verde da Raia)

   "Elisa tinha 31 anos, 5 filhos, um marido inválido, uma vaca uma égua - uma vida pela frente. «Fui a rainha das mulheres», dizia ela. Em quê? Ao longe vê-se o monte da fronteira, suave, dissimulado entre as arestas das espalhafatosas casas de emigrante. Elisa, hoje com 71 anos, prime os lábios como quem retesa um arco. e dispara: «Fui a rainha das mulheres».
   Quando o marido adoeceu, com a úlcera varicosa que o impediu para sempre de trabalhar, tinha o filho mais velho, Fernando, 11 anos. De repente, era ele o homem da casa. De madrugada, enquanto as outras crianças dormiam, Fernando e Elisa saiam para a sua aventura. Geralmente era ela que ficava do lado de cá, a vigiar, segurando a égua. Fernando, ágil e leve, atravessava a fronteira, saltando o ribeiro, pegava na mercadoria e corria com ela até ao dorso da égua. Depois era só galopar em direcção à aldeia. Divertia-se como ninguém. Mesmo quando ficava ele com a égua, atento aos guardas que faziam o plantão. Elisa atravessava o ribeiro, com água pela cintura, carregada com caixas de ovos, ou sapatos e tecidos, seda, bombazina, cobertores, peixe e carne, polvos, frutos secos, farinha, leite, café, azeite rebuçados. Fernando controlava os guardas, fazia sinais à mãe, inventava manobras de diversão para os polícias, em caso de perigo. Elisa só tinha de por um pé em território português. A partir daí, o negócio era com Fernando. Ele levaria o contrabando ao «patrão» que o encomendara.
   Contrabandeava-se todo o tipo de produtos, nos dois sentidos. Dependia das épocas. Durante a guerra civil, eram os espanhóis que vinham cá buscar tudo. Depois era ao contrário. Houve alturas em que iam cordeiros de cá para lá, e carneiros velhos de lá para cá. «Iam a Espanha buscar carne podre». Este é Delmar, que sabe do que fala. «Ainda há esqueletos espalhados pelo monte. Vinham da Holanda, para matadouros portugueses. Morriam na travessia. Para lá, iam burros.
   Fernando lembra-se de ter visto 500 burros guardados perto do quintal da mãe. «Dizia-se que era para chouriço espanhol».
   Utilizavam-nos no trabalho. Mas nasciam demasiados e ninguém pensou em usá-los na alimentação. Costumavam deitá-los a afogar. Há até uma zona do rio a que chamam o «burreco». Depois começaram a mandá-los para a fronteira, esse lugar perverso, que tudo transformava em ouro.
   A fronteira era uma roda-viva e um modo de vida para quase toda a gente em Vila Verde da Raia, até ter desaparecido, já nos anos 80. Não havia mais nada.
   Trabalhar na terra, como jornaleiro, não dava para matar a fome. O contrabando era perigoso, mas rentável. Cinco coroas por cada par de botas, três coroas por um quilo de rebuçados, dez escudos por uma coberta. «Dava para nos sustentarmos», diz Elisa, que fazia, com Fernando, uma média de duas «saídas» por dia. «Por isso nunca emigrei. Não ia deixar os meus filhos a serem criados sem rei nem roque. Passava-se fome aqui na terra. Mas a mim nunca me faltaram as batatas».
(...)
 
Paulo Moura, in "Longe do mar" 

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