Crónica Satânica

   "Um tipo absolutamente anticlerical, particularmente contra a Igreja Católica. Anarquista pacífico, só de palavras. O primeiro filho nasceu e aos três meses pareceu apresentar no seu sorriso de bebé um rictus satânico. O feliz pai resolveu então ter uma atitude forte, de acordo com as suas convicções profundas. Pensavam chamar Pedro à criança, mas o progenitor desistiu imediatamente. O filho tinha de se chamar Satanás. A dificuldade foi a conservadora, no momento do registo. Que tal nome não podia ser dado. Argumento do pai: os nomes da Bíblia são aconselhados, são ou não? Eram.
   Então, Satanás aparece mencionado na Bíblia centenas de vezes, é portanto um nome bíblico. Não podiam impedi-lo de registar assim o filho. A conservadora não tinha grande formação nem prática, provavelmente ainda não beneficiada pelas viagens de troca de experiência em que o país era pródigo, ficando sem argumentos legais perante o insólito. Mas já viu as consequências futuras de usar tal nome, quer a infelicidade do seu filho? O argumento da conservadora não o demoveu. Ele insistiu e ganhou. Não havia lei nenhuma que impedisse o nome, nem o de Diabo, Asmodeu ou Belzebu. A conservadora teve de aceitar.
   Quando chegou à idade de ir para a escola, Satã, como era mais conhecido familiarmente, percebeu a troça inicial dos colegas ao ouvirem o nome Satanás Antunes da Silva. A propósito, poderia ter ficado com Satanás do Inferno Silva, que ainda seria mais vulcânico. Satanás, que no fundo era tão pacífico como o pai, mas igualmente teimoso, não esteve com meias medidas. Olhou fixamente para os colegas sarcásticos. Olhou só. Fixamente. E os outros, de repente, aliaram o nome ao olhar. Acharam estar perante um ser satânico. Embora ainda não andassem na catequese, já tinham ouvido na família estórias aterradoras e o conselho, nunca sigas Satanás, afasta-te de Satanás. O novo colega incutiu-lhes medo. Daquele que gela as plantas dos pés. Imaginaram um cheiro a enxofre onde só havia o do recreio da escola almiscarado de jacarandás majestosos.
   O caso correu a escola. Ninguém mais se meteu com Satanás da Silva, mesmo os mais velhos e truculentos. Porque há coisas que não dá para facilitar com elas, te pegam pela mão ou, à falta de melhor, te pegam pelo pé.
   O rapaz, se ganhou em reputação de terror, não ganhou em amizades. Apenas se aproximou dele a Sofia, menina-rapaz que sempre recusou usar saias e provocava contínuos choques na escola por ir de calções ou calças, numa época em que as mulheres eram remetidas para o aconchego das casas e para a costura. Não se pode dizer que fossem amigos. Mas conviviam. E Sofia ria às gargalhadas quando os outros a aconselhavam, afasta-te do Satanás. Ela respondia, afinal tens medo do garfo dele, mas por enquanto só o vi utilizar o garfo para apanhar umas batatas ou pedaços de carne que lava à boca, como nós. Ria e ia embora. Ostentava então familiaridade com o membro mais banido da escola.
   Ele não lhe agradecia, embora percebesse a intenção. De facto, pouco se interessava por ter amigos, mesmo a Sofia. Ainda não estava na idade de espiar as mamas dela, quando começassem a tentar formatar a blusa, a libido não se desenvolvera. Portanto, a Sofia era uma forma de passar o tempo do seu isolamento.
   No fundo, Satanás da Silva desde pequeno estava a ser preparado para melhor suportar e vencer a solidão da vida. Os outros deviam ter inveja dele e não medo.
   Porém, as crianças são mesmo imprevidentes quanto ao futuro. Algumas até acreditam nele."
 
Pepetela, in "Crónicas maldispostas"  

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