Uma vida difícil
O conde Drácula abriu a porta do apartamento. Lá fora, o sino da igreja dava seis da manhã. O dia começava a clarear. Lívido, pálido como uma vela, o conde entrou na pequena sala. Vinha estafado, o cabelo em desalinho, o fato rasgado, o suor alagando-lhe a testa ossuda. Tivera uma noite dos diabos. A vida cada vez estava mais difícil.
Aproximou-se da mesa de jantar e pousou a garrafa de água das Pedras. Ouviu um ruído de panelas na cozinha. Lá dentro, a mulher preparava o jantar. Chamou-a:
- Vampira!
Mas ela não respondeu. O conde desistiu. Tirou a casaca e deitou-se dentro do caixão. Bem precisava de algum repouso. Desdobrou o jornal da manhã e começou a ler. Raio de vida! Todos os dias as coisas pioravam! Os preços aumentavam, os impostos aumentavam e as pessoas cada vez tinham menos dinheiro para comer. E isso, para ele e para a sua família, constituía um drama. O sangue que actualmente extraía das vítimas era da pior qualidade. Por um lado, tinha muito menos vitaminas devido à má alimentação. Por outro, vinha conspurcado de antibióticos, fumo, droga e álcool. Noutros tempos, numa noite de trabalho, enchia facilmente uma garrafa de litro que dava bem para ele, para a mulher e para o filho, o Draculino. Agora, nem conseguia encher meia garrafa de água das Pedras. E para isso tinha de chupar o dobro das pessoas de antigamente! Para além da fome que começava a perturbar o seu lar, havia o perigo da qualidade do sangue, quase sempre de 2ª ou 3ª. Daí provinha o seu estado de fraqueza e inúmeros incómodos digestivos de que ele e a família sofriam.
Já nem sabia se a culpa de tudo aquilo era do Governo ou da conjuntura internacional. Estava quase a adormecer quando Vampira entrou com a garrafinha na mão. Desabrida, como sempre, gritou-lhe:
- Olha lá, tu andas a brincar com a gente?! Achas que meia garrafa chega para te sustentar a ti e ao teu filho? Para já não falar em mim! Não me digas que não consegues arranjar mais! Parece-me que não trabalhas o suficiente para sustentar uma família! Tu deves passar as noites a discutir política pelos jazigos, é o que é!
O conde Drácula olhou-a com olhos mortiços. Já não tinha paciência para discutir. Apesar de tudo, ia a responder quando irrompeu pelo quarto o filho, o Draculino:
- Papá, papá, veja esta redacção!
Mais outro fadário para o conde. Desde que o país se democratizara, o filho frequentava a escola primária. Como pai e como conde, era obrigado a rever os exercícios do filho. Pegou no caderno e começou a ler. De súbito, ergueu-se do caixão e, sem mais preâmbulos, deu uma estrondosa bofetada na criança. Esta levou a mão à boca. Um dos caninos salientes partira-se na ponta. Vampira entrepôs-se entre o pai e o filho e gritou:
- O senhor é um anormal! Um assassino! Isto são modos de educar a criança?! Não sabe que os mais recentes métodos pedagógicos proíbem a violência?! Além disso, você partiu-lhe um dente fundamental para o exercício futuro da sua profissão!
O conde Drácula esbracejava, agitando o caderno na mão:
- Esse seu filho é uma besta! Julga que ainda temos castelo na Transilvânia! Estou farto de ser explorado por vocês os dois, não aguento mais!
Vampira retorquiu:
- Mas que fez o miúdo, homem?!
O conde pôs-lhe a redacção na frente do nariz:
- Veja. E cheire, cheire! E diga-me se não tenho razão! Essa criança anda a esbanjar o que tanto me custa a arranjar! Já viu que, em vez de fazer os exercícios com tinta azul, sua excelência, o seu filho, utiliza o sangue que trago para casa?!
In "Pão com manteiga"
In "Pão com manteiga"
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