Uma dor leve, um pensamento profundo
"- É assim que gosto de pensar, repare.
(Silêncio total. Um não diz nada, o outro nada diz; tenta apenas reparar na cara do primeiro.)
- Vossa Excelência viu?
- Uma forma estranha de colocar a boca, os olhos, as sobrancelhas e a testa.
- Exacto. Mas isso do lado de fora.
- O que muda é apenas a posição relativa dos elementos da cara. Eis como Vossa Excelência pensa. vou imitá-lo.
(Imita-o.)
- É, de facto... é assim mesmo.
- Estão todos os elementos da cara - boca, olhos, bochechas, nariz, orelhas - mas com uma tensão deferente. Como se estivessem a ser atacados por dentro!, louvado seja o senhor.
- É isso mesmo. A cara de quem pensa parece estar a sofrer um ataque interno.
- ... realmente...
- ... é mesmo muito semelhante a uma cara que esteja a sofrer. Ou seja...
- Ou seja?...
- Vossa Excelência franze a testa e não sabemos se, por dentro da cabeça, está em profundos raciocínios ou simplesmente a dizer ai!
- Eis um dilema sério.
- Há também uma outra questão.
- Diga?
- Mesmo assumindo que se sabe que Vossa Excelência está a pensar e não a sofrer, para quem vê de fora, o rosto de quem está a pensar numa banalidade é exactamente igual ao rosto de quem está a descobrir finalmente algo que o mundo inteligente procura há séculos.
- Que horror!
- Exactamente - que horror! Pensar que podemos ter a mesma face quando estamos a descobrir pela primeira vez que E=mC2 ou quando constatamos: hoje está frio... Eis o que é desolador.
- Muito desolador.
- O ser humano deveria mudar por completo não apenas a sua fisionomia, mas até a sua fisiologia, no momento em que pensa sobre questões importantes.
- Eventualmente a sua cabeça deveria aumentar de tamanho...
- Exacto.
- Passar, por exemplo, para o dobro do tamanho quando pensa em algo importante.
- E diminuir para metade do tamanho quando pensa em algo irrelevante.
- Eis uma solução.
- Seria aliás interessante, insisto, que a cabeça de alguém, o seu tamanho medido com fita métrica bem exacta, dependesse disso mesmo - da qualidade média dos seus pensamentos.
- Oh!
- Uma cabeça pequena... uma cabeça pequeníssima...
- ...seria a consequência da qualidade média dos seus pensamentos.
- Pela anatomia exterior teríamos de imediato uma percepção da qualidade da vida mental da pessoa com quem nos cruzávamos. Uma espécie de biografia mental explícita.
- Tudo assim estaria mais claro.
- Bem mais claro, sim."
Gonçalo M. Tavares, in "O Torcicologologista, Excelência"
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