História de uma mosca que não sabia quem era

Naquele pinheiro-manso vivia uma mosca que não sabia que era uma mosca por nunca ter visto outra na vida. Uma vez que os seus olhos eram do tamanho do corpo, a única coisa que via de si própria eram as asas negras. Assim, a mosca sabia que não era um pássaro por não ter penas, nem uma fada por as asas não serem brancas.
Certo dia a mosca viu uma abelha pousada numa flor e colocou a seguinte hipótese.
- Olha, se calhar sou uma abelha!
Ficou a ver o que fazia a senhora abelha e achou o seu trabalho interessantíssimo: sugava néctar.
A mosca foi também beber de uma flor e depois, não sabendo o que fazer com tanto néctar, engoliu-o. Era uma experiência agradável, aquela; não havia nada mais saboroso no mundo.
Estava a mosca a deliciar-se com a sua refeição, quando, de repente, a flor da ameixa gritou:
-Sai daqui, coisa porca!
A mosca alarmou-se com o insulto e saltou assustada. Reclamou:
-Respeitinho, seu projecto de ameixa! Sou uma abelha! Ainda te corto a raiz com o meu ferrão!
A flor desatou a rir e abanava as pétalas para refrescar o rosto.
-Que coisa idiota! Tu não és abelha, és uma mosca!
-Uma mosca?! O que é uma mosca?
-É uma coisa odiosa! E porca, justamente!
-Porca?!
-Sim, P-O-R-C-A! As moscas pousam em fezes.
-Em que tipo de fezes?
-Em todo o tipo ! Pastosas, semilíquidas, líquidas, todas!
-Então, e depois?
-E depois comem-nas!
A mosca calou-se, contemplativa. Ora aí estava uma ótima ideia!
Perguntou:
-É mau comer fezes?
-Claro! As fezes cheiram mal! Só as flores é que têm um perfume bom!
A mosca esfregou as mãos uma na outra e deu às asas. Agrada-lhe a ideia de comer fezes pastosas, semilíquidas ou líquidas, mas parecia-lhe injusto que as ditas fossem malcheirosas. Daí o seu projeto de experiência cientifica:
Ia encher a flor da ameixa com fezes pastosas, semilíquidas e líquidas para ver se o perfume destas últimas passava a ser bom.
Era uma ideia fantástica. E a mosca voava contente numa trajetória caótica.
Tinha finalmente descoberto quem era.
E já sabia o que comer.

Ana Pessoa in "O caderno vermelho da rapariga karateca"

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