Memória dos dias
Os dias estão quentes.
Os dias são longos.
Os dias parecem cada vez mais insuportáveis para definir.
Os dias gastam-se. Gastam-se muito. E depressa. As horas que tecem os dias é que são lentas e fragéis.
Há dias que têm a textura dos anos. Também é verdade que há dias velozes. Voam. Volatilizam-se. Perdem-se.
Queremos agarra-los, segurar seus sinais, seus cânticos, sua respiração e quando nos apercebemos já não existe.
Deles, fica a memória, no musgo sensível das aurículas e dos ventrículos, apenas um sussurro, o sal quase imperceptível das lágrimas contidas, o eco muito longe dos sorrisos verdadeiros.
Os dias somam-se.
É uma contabilidade incrível a que nos exigem.
Dos dias escrevemos as parcelas em cartas, em postais, em páginas de livros, em bocadinhos de poemas, nas imagens dos filmes a que nos associamos, de que ficamos coincidentes, somos personagens e guionistas, realizadores e produtores porque o que nos devora é o medo imenso que de nós se perca o retrato, o nome, o roteiro, os sinais.
Há dias em que cabe a história toda de uma vida, mas há vidas com muitos dias que são dias-noite, dias tão apagados, tão sem estrelas que nem se sabe se foram vidas ou se tiveram dias a dar-lhes o sentido. Que sentido? Já me perdi. Era de dias que eu falava. Não dos sentidos. Não de sentido. Os dias, todos, não têm qualquer sentido. Os sentidos não sabem nada de dias. Nem de noites.
Pulsam, os sentidos.
Respiram.
Agitam-se.
Existem.
Incendeiam-nos. Abrem-nos sulcos na pele, murcham-nos a rosa que trazíamos no olhar, o morango maduro que era a nossa boca. Outras vezes, outros dias, os sentidos fazem-nos descobrir o sentido do sol, arquivam gargalhadas e a voz do do primeiro namorado que é sempre o mesmo da história toda.
Trazem para perto o que ficou longe, misturam o tempo, perspectivam a eternidade, noutras escalas, noutras paisagens.
Os dias perdem-se.
Vou enviar o meu último sorriso e pôr um anúncio nas páginas dos jornais:
"Perderam-se alguns dias que podiam ter sido mais importantes.
São irrecuperáveis, sabe-se agora. Mas tinham um valor imenso.
Dão-se alvíssaras a quem os encontrar."
Sobre esses dias perdidos escreverei o poema. Reencontrarei o pretexto.
Vou riscar a palavra calendário nos dias que vierem.
Escreverei, não a data mas Dia.
Apenas.
E a vida será como um rio: escorrendo lenta e naturalmente para a foz.
Maria Rosa Colaço in "Há outras mulheres assim"
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