Desenhos no Ar
Nasceu cigana e nela trazia inscritos os códigos da ancestralidade cultural. Ao primeiro sopro que lhe saiu dos pulmões desenhou-se no ar um futuro: crescer junto da família, aprender as curvas redondas das letras até o corpo tomar igual forma, casar-se cedo e ter filhos, ajudar os netos a crescer junto à família.
O fado cigano...
A mãe cantava-lhe canções de embalar em castelhano. Entre tangos e malagueñas, a infância corria-lhe feliz. Os pés descalços, o vestido rasgado, os joelhos esfolados da meninice vivida na rua com os primos. Foi à escola porque o pai assim o quis, a sonhar-lhe uma vida diferente da sua. Quando o corpo assumiu o seu destino, passou a amanhar a casa e a cuidar dos irmãos, enquanto os pais iam para a feira ganhar a vida. Juntava o troco dos avios do supermercado e comprava romances de cordel que lia quase às escondidas. Suspirava, e, no entrelaçar cor-de-rosa dos personagens, desenhava no ar futuros diferentes do seu.
Da janela de casa via passar os Outros da sua idade, rumo aos festivais de Verão ou às discotecas. De dentro de casa via os primos homens divertirem-se em experiências vedadas à sua condição feminina. Sentimentos diferentes cresciam dentro de si: a revolta pela desigualdade e o desejo de voar mais longe. Entre fandangos e rumbas bailados nas festas da família, no soar das palmas, clap clap, bateu o pé no tablao e deu cabaças aos noivos prometidos. O pai reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados, e deixou-a seguir.
Revirou os estereótipos do avesso e aproveitou os subsídios sociais. Voltou à escola e aprendeu a arte da mediação entre pessoas, a construir pontes de comunicação entre culturas. Conquistou a independência financeira e ganhou consciência de Si e de Cidadã do Mundo. Um sentimento diferente crescia dentro dela: uma vontade de mudar a vida de outras pessoas, de mudar o fado de outras mulheres iguais a ela. Com as suas Companheiras de Viagem, construiu um sonho e fundou uma Associação. Teimosamente, o orgulho e o desafio estampados nos rostos, bateram o pé e estremeceram o Mundo. O delas próprias. E o dos Outros que se vão cruzando no caminho. Entrelaçam afectos e desenham a carvão esquissos incertos no ar. Vidas que se transformam. Consciências que se revelam. Pessoas que se descobrem.
A dança estava-lhe no sangue. Aprendeu a arte do Flamenco, mediada por um duende inscrito à nascença. E com eles, arte e duende, aproximou pessoas e culturas. Deixa bocadinhos de Si nas alunas não-ciganas, as payitas. Conta-lhes histórias de luta e de resistência, no compás matemático de uma sevilhana ou na aritmética complexa de uma bulería. As saias esvoaçam no ar, os tacões batem no chão, as palmas ecoam no espaço, clap clap, e as alunas improvisam a música, num duende que entrelaça afectos e esboça futuros. Naquele tablao, umas e outras esquecem que nasceram diferentes e constroem pontes de comunicação. O acolhimento do Outro ali, vivido e sentido. Bailado a compás...
Conheceu o Amor, tal como nos romances cor-de-rosa que comprava com o troco dos avios. Apaixonou-se por um Senhor e percebeu que era o Sentimento de uma Vida. Casou-se às escondidas. Quando contou ao pai, ele chorou um lamento jondo que soou pelos corredores da Existência, numa soléa que expressava o medo do futuro. Os casamentos ciganos duram uma vida. Os casamentos entre payos, não. Ayayayyyy... Mas reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados, e deixou-a seguir. Porque para um Cigano não há Valor mais importante que a felicidade dos seus.
Nasceu cigana. Sentiu-se pequenina durante toda a vida, mas é GRANDE. E da mesma forma que improvisa a música, improvisa o futuro, esquissos incertos no ar. É Cigana, filha do vento. Corajosa, orgulhosa, determinada. E não passou um dia, desde o seu nascimento, em que não desenhe no ar uma canção. A sua.
Vanda Fidalgo, in O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder
O fado cigano...
A mãe cantava-lhe canções de embalar em castelhano. Entre tangos e malagueñas, a infância corria-lhe feliz. Os pés descalços, o vestido rasgado, os joelhos esfolados da meninice vivida na rua com os primos. Foi à escola porque o pai assim o quis, a sonhar-lhe uma vida diferente da sua. Quando o corpo assumiu o seu destino, passou a amanhar a casa e a cuidar dos irmãos, enquanto os pais iam para a feira ganhar a vida. Juntava o troco dos avios do supermercado e comprava romances de cordel que lia quase às escondidas. Suspirava, e, no entrelaçar cor-de-rosa dos personagens, desenhava no ar futuros diferentes do seu.
Da janela de casa via passar os Outros da sua idade, rumo aos festivais de Verão ou às discotecas. De dentro de casa via os primos homens divertirem-se em experiências vedadas à sua condição feminina. Sentimentos diferentes cresciam dentro de si: a revolta pela desigualdade e o desejo de voar mais longe. Entre fandangos e rumbas bailados nas festas da família, no soar das palmas, clap clap, bateu o pé no tablao e deu cabaças aos noivos prometidos. O pai reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados, e deixou-a seguir.
Revirou os estereótipos do avesso e aproveitou os subsídios sociais. Voltou à escola e aprendeu a arte da mediação entre pessoas, a construir pontes de comunicação entre culturas. Conquistou a independência financeira e ganhou consciência de Si e de Cidadã do Mundo. Um sentimento diferente crescia dentro dela: uma vontade de mudar a vida de outras pessoas, de mudar o fado de outras mulheres iguais a ela. Com as suas Companheiras de Viagem, construiu um sonho e fundou uma Associação. Teimosamente, o orgulho e o desafio estampados nos rostos, bateram o pé e estremeceram o Mundo. O delas próprias. E o dos Outros que se vão cruzando no caminho. Entrelaçam afectos e desenham a carvão esquissos incertos no ar. Vidas que se transformam. Consciências que se revelam. Pessoas que se descobrem.
A dança estava-lhe no sangue. Aprendeu a arte do Flamenco, mediada por um duende inscrito à nascença. E com eles, arte e duende, aproximou pessoas e culturas. Deixa bocadinhos de Si nas alunas não-ciganas, as payitas. Conta-lhes histórias de luta e de resistência, no compás matemático de uma sevilhana ou na aritmética complexa de uma bulería. As saias esvoaçam no ar, os tacões batem no chão, as palmas ecoam no espaço, clap clap, e as alunas improvisam a música, num duende que entrelaça afectos e esboça futuros. Naquele tablao, umas e outras esquecem que nasceram diferentes e constroem pontes de comunicação. O acolhimento do Outro ali, vivido e sentido. Bailado a compás...
Conheceu o Amor, tal como nos romances cor-de-rosa que comprava com o troco dos avios. Apaixonou-se por um Senhor e percebeu que era o Sentimento de uma Vida. Casou-se às escondidas. Quando contou ao pai, ele chorou um lamento jondo que soou pelos corredores da Existência, numa soléa que expressava o medo do futuro. Os casamentos ciganos duram uma vida. Os casamentos entre payos, não. Ayayayyyy... Mas reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados, e deixou-a seguir. Porque para um Cigano não há Valor mais importante que a felicidade dos seus.
Nasceu cigana. Sentiu-se pequenina durante toda a vida, mas é GRANDE. E da mesma forma que improvisa a música, improvisa o futuro, esquissos incertos no ar. É Cigana, filha do vento. Corajosa, orgulhosa, determinada. E não passou um dia, desde o seu nascimento, em que não desenhe no ar uma canção. A sua.
Vanda Fidalgo, in O Canto do Galo: Microcontos do Blog O Galo de Barcelos ao Poder
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